Clamores Anti-racistas | Crítica de “Clamor Negro

por Vendo Teatro
4 comentários
Foto: Samuel Santos

Foto: Samuel Santos

Por Matheus Campos
Recife, Novembro de 2019

Clamores Anti-racistas

“Quem pensava achar num caminho
uma bala perdida
no exato momento que nada procurava?”
– Miró da Muribeca, “diZerição”, 2012

Recife, 24 de novembro de 2019, Rua da Aurora, aproximadamente 17:38. Começava para mim, naquele momento, o espetáculo “Clamor Negro” de Odailta Alves, que encerrava a III (terceira) edição do festival luz negra do Grupo O Poste Soluções Luminosas.

Pego o meu ingresso e sento-me em um banco, às margens do Capibaribe. Enquanto espero o horário de abertura do espaço O Poste, vejo um Recife diferente do costumeiro: silencioso, calmo, despretensioso de maldades, sem riscos, sem pré-conceitos e preconceitos. Há um toque de utopia no ar.

Entretanto, toda a utopia se desfaz em questão de minutos. A fila para a entrada da peça já estava se formando e logo me dirigi até ela, ansioso, com o ingresso na mão, entro na fila e já de cara me choco: não havia muitos homens ali, apenas 3, e desses três apenas um branco: eu.

A partir desse momento, minha cabeça fervilha, e milhões de pensamentos críticos e autocríticos me abraçaram até o final da noite. Por que só um homem branco ali? Até onde o patriarcado nocivo, embebido pela branquitude, vai e interfere nos meios sociais e culturais?

O espetáculo se inicia às 18:08 e o espaço já quebra o tradicionalismo do palco italiano – palco com um único ângulo de visão da performance – permitindo que o espectador contemple a obra do local que mais lhe agradar. Além disso, de imediato a proposta do festival já atendida pela peça – o negro em estado de representação, romper paradigmas de preconceito através da própria presença do artista negro em situação de visibilidade – com um elenco, direção e roteiro compostos por artistas negras, que retratam sobre a realidade do negro em nosso país.

A teatralidade consiste em um monólogo realizado pela atriz e poetisa Odailta Alves, que surge a partir do seu livro de poesias “Clamor Negro”, e também conta com a presença das poesias “Gritaram-me Negra” de Vitória de Santa Cruz, “Não vou mais lavar os pratos” de Cristiane Sobral e algumas músicas de temática negra como “A carne” composta por Seu Jorge, Marcelo Fontes do Nascimento S. e Ulises Capelleti, mais comumente conhecida pela voz de Elza Soares. Dessa forma gerando um ambiente artístico o qual crítica e desvela o racismo velado enraizado na sociedade.

O monólogo é amplo e para que se possa arranhar minimamente as superfícies dele, é válido analisar o nome do monólogo “ Clamor Negro”. Clamor significa, segundo o dicionário, ato ou efeito de clamar. Gritaria de quem suplica, protesta, reclama, ameaça, aplaude etc. Rogo ou queixa proferida em altas vozes. Procissão de preces em que os fiéis, juntos, caminham rezando alto.

E negro é, também de acordo com o dicionário, cor escura que se assemelha à cor do carvão: o negro do asfalto. Indivíduo com a pele escura pelo excesso de pigmentação. Em uma concepção adjetiva, falta completa de cor por não ser capaz de refletir a luz; preto. Cuja coloração é escura: quadros negros; manchas negras. Que expressa uma cor cinzenta e escura; escuro: noite negra. No sentido pejorativo, ainda segundo o dicionário, “algo que anuncia adversidades ou infortúnios; funesto: destino negro.”.

Partindo de tais premissas, pode-se deduzir, inicialmente, que o nome da performatividade teatral se trata, de fato, de um clamor, uma queixa das negras e negros sobre os pesos negativos e racistas sobre a sua cor, a termo que denomina a cor da sua carne, as suas características. E ao presenciar o espetáculo, as deduções acerca do título se confirmam e vão mais além. Há ali uma reivindicação de igualdade, humanidade, verdade… a desmistificação, desmarginalização e desromantização sobre a história e imagem do negro.

Entretanto — como homem, branco e cis, membro de um grupo notoriamente privilegiado pela sociedade e sistema —, é fundamental esclarecer, que não me encontro em local de fala, mas sim ouvinte, observador e aluno.

A teatralidade desviscera simbolismos racistas e patriarcais-misóginos existentes na sociedade e toca a plateia com seu roteiro forte, consistente. É possível perceber nitidamente o tom de impacto no ambiente durante o processo artístico, existem lágrimas nos olhos dos espectadores, suspiros constantes, corpos tensos e rostos surpresos.

Ao fim da peça-aula, aplausos, gratificações e uma nova aula, de cinquenta minutos, surge, em formato de debate, com a diretora Odailta Alves. Mais códigos fascistas são descortinados e pensamentos irrequietos e críticos despertos.

E assim, às 20:38, todo o processo artístico termina, com mais aplausos e fotos para a posteridade. Entretanto, as ideias plantadas naquele local simplesmente começam a reverberar, como uma centelha de uma revolução igualitária, que traz uma luz essencialmente negra para elucidar e quem sabe transformar toda uma sociedade atualmente racista em uma sociedade futura e primordialmente anti-racista.

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Maria Carolina da Silva
4 anos atrás

Vontade imensa de ter estado presente. Belíssimo relato.

Odailta Alves
4 anos atrás

Gratidão, querido, pela bela crítica do Espetáculo Clamor Negro, fico muito feliz por ler suas palavras e constatar as sensações causadas. Sigamos nas nossas práticas diárias antirracistas!

MARIA CAROLINA CABRAL FREITAS
4 anos atrás

Eu sempre te admirei, a forma que você se expressa, a forma que você usa as palavras.. eu tenho mt orgulho de te conhecer, parabéns <3 jaja ta ganhando o mundo todo.<3

Walquiria Ferreira do Amaral Santos
4 anos atrás

Você nos faz sentir emoção ao ler todo esse relato, fiquei refletindo como se estivesse lá… Torço para que você vá longe, bem mais longe. Você merece o mundo.

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