O passado que não passou | Crítica de “O Mensageiro”

por Vendo Teatro
0 comentário
Foto: Shilton Araújo

Foto: Shilton Araújo

Por Paulo Ricardo Mendes
Recife, Novembro de 2019

O passado que não passou

Odoyá minha mãe Yemanjá..Epa Babá…que proteja minha família e não me deixa desanimar e nem perder a minha fé!
(Minha prece aos Orixás)

A história, por mais antiga que seja, sempre é revisitada pelos costumes e hábitos que atravessam o tempo. Ela ainda continua a ditar e a replicar comportamentos na atualidade. Nesse sentido, é fundamental conhecer o passado para entender como certas questões são abordadas e vistas no século XXI.

No monólogo “O mensageiro”, da atriz Aline Gomes, com direção de Agrinez Melo, que fez parte da programação do Festival Luz Negra, no espaço O Poste, somos convidados a mergulhar nas histórias dos povos quilombolas. A atriz interpreta personagens que dialogam entre si através das sequelas, que persistem até hoje, advindas da exploração dos europeus, que resultou na escravização dos povos africanos e no genocídio dos indígenas.

De imediato, ao ultrapassarmos a entrada do O Poste, os cinco sentidos são estimulados. Os espectadores entram em contato visual com o cenário, no formato de um círculo, delimitado por uma linha cheia de lâmpadas, que separa o público da cena, numa espécie de demarcação de território. O seu interior é preenchido por palha, acompanhado de objetos cênicos, como um banquinho, charuto e jarra de barro. As cadeiras, que na verdade são pallets, distribuídos envolta da apresentação, permite um contato mais próximo com a atriz, até pelo tamanho do espaço, que é reduzido. O estrado de madeira não é confortável, a coluna dói, mas as cenas que estão por vir também, um retrato real de um passado que ainda não passou. Um som com ruídos também desperta a audição, apesar de não compreender o que está sendo dito.

Substâncias aromáticas incensam o local, nos revelando previamente as temáticas que serão abordadas no monólogo, visto que o incenso vem sendo utilizado desde os primitivos em diferentes civilizações, sobretudo em cerimônias religiosas, contendo significados que transcendem o mundo material. A fumaça, por exemplo, seria o elemento espiritual etéreo que paira no ar, por onde todas as energias, pensamentos e informações espirituais perpassam.

Quem conhece o trabalho do O Poste sabe bem que ele desenvolve, já tem um tempo, uma pesquisa voltada para as raízes africanas, até pela própria característica dos integrantes (Naná Sodré, Agrinez Melo e Samuel Santos), que se afirmam negros em movimentos, pelo fato de serem atores pretos interpretando personagens relacionados à temática afro e realizando outros fazeres teatrais. Nesse espetáculo, não é diferente, pois ele é fruto das aulas de Aline com o grupo. O roteiro, inclusive, foi sendo montado nesses encontros com Agrinez Melo, professora de uma das disciplinas. O texto da dramaturgia ultrapassa as barreiras espaço-tempo, com palavras coloquiais, gírias, além de referências aos orixás.

Envolto nesse universo dos ancestrais, dos contos brasileiros e africanos, as narrativas ganham vida. Histórias que deixam um gosto amargo na boca: a mãe que teve o filho, mas morreu logo em seguida, por não ter os atendimentos que precisava pós-parto, e após ser jogada ao mar, foi levada por Iemanjá. O menino que cresce infeliz sem ter o acalanto da sua progenitora e o pai que tentou proteger o filho e foi açoitado até a morte.

Quantos personagens um só corpo é capaz de interpretar? Aline evoca todos eles de forma bem colocada. A postura muda, o semblante e a entonação da voz, assim como, a iluminação e a sonoplastia. Em alguns momentos da dramaturgia a atriz reproduz gestos das danças para Oxum e Oyá ao som do tambor, berimbau e uma espécie de cavaco, tocados por Túlio Xambá.

Mas, entre tantas memórias trazidas em cena, um papel ressalta diante dos demais, a história de João Batista, mais conhecido como Malunguinho. Tive essa impressão por causa da forma como a narrativa é desenrolada, como se estivesse preparando o solo para mergulhar na vida, do que ficou conhecido pelos povos quilombolas como o rei brasileiro. Como já conhecia sobre essa figura, foi mais fácil identificá-lo na encenação pelo uso das referências, como a chave pendurada no pescoço, por exemplo. No bate-papo, ao final do espetáculo, Aline revela, como suspeitava, que a trajetória dele foi a base da construção do espetáculo.

Só para contextualizar: Malunguinho viveu na primeira metade do século XIX, no Quilombo do Catucá, época de rebeliões e movimentos políticos revolucionários, que tinham o intuito de reivindicar a liberdade dos povos negros e indígenas. Nesse contexto, ele ficou conhecido por lutar a favor dessas minorias, confrontando a coroa portuguesa. Por causa disso, ele foi alvo de várias tentativas de invasão com o objetivo de dizimá-lo, pois correspondia uma ameaça aos senhores brancos. Ao se refugiar na aldeia de seus irmãos, ele foi estabelecendo uma relação com a natureza, com a magia e a jurema – religião indígena, influenciada por cultos cristãos e afro-brasileiros.

Pela sua coragem, ele ganhou uma chave mágica que abria portes de senzalas e cativeiros. Por fim, após várias tentativas de fuga, Malunguinho é morto numa emboscada. Apesar de sua morte, ele atualmente é visto com o senhor da mata, entidade que permite a entrada para os reinos da jurema.

É certo que depois desse fato verídico ter ocorrido, novos líderes libertários surgiram na história. Nesse sentido, é impossível não lembrar de um nome que marcou o ano de 2019: a socióloga e política brasileira, Marielle Franco, porque mesmo sendo de outro período e um contexto diferente, muitas situações convergem com a do líder quilombola (a raça, os ideais, a luta, e o motivo pelo qual ela foi assassinada). Inclusive, a vereadora é lembrada em um dos momentos finais do monólogo.

Nesse quesito, as narrativas contadas, por meio dos elementos simbólicos presentes na peça, representados pela atriz, promovem uma associação do espectador a uma dada realidade e os modos de vida de uma comunidade em cada tempo. Isso faz com que haja não só a imersão do público na dramaturgia, como também, faz com que ele perceba a sua importância no processo histórico e como agente de mudanças, a partir de casos, como o de Marielle e do Malunguinho. Quanto a mensagem do espetáculo, se, para alguns a morte desses heróis simbolizou uma desarticulação de ideais defendidos por eles, para outros, traduziu em uma vida de luta e resistência, em busca de liberdade e igualdade.

O fim desses líderes representou, na verdade, o começo de um novo capítulo da história.

Presentes!

0 comentário
Subscribe
Notify of
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments

Related Posts