Teatro da Luz Oroboros | Crítica de “Cordel do Amor Sem Fim”

por Vendo Teatro
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Foto: Thaís Lima

Foto de: Nome.

Por Luiz Diego Garcia
Recife, Novembro de 2019

Teatro da Luz Oroboros

Em “O Amor Bate Na Aorta” Carlos Drummond de Andrade derrama os seguintes versos:

[…]o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que corre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender…

Abrindo a temporada de apresentações do festival Luz Negra, “Cordel do Amor Sem Fim” comemora dez anos de estrada no repertório do Grupo de Teatro O Poste – Soluções Luminosas. O festival se debruça sobre a temática negra na cena teatral e também aborda pontos político-estéticos de valores tendo como matriz a ancestralidade africana, assim como também a verticalíssima pesquisa sobre o teatro antropológico – que encontra no Espaço O Poste sua maior referência da cidade em tal vertente. Partindo desse espírito fugaz, vê-se em “Cordel do Amor Sem Fim” uma dança de vozes e olhos melódicos sempre dispostos, mas com o objetivo de contar uma história tão antiga quanto a fome do sertão: uma história de amor.

Numa cidadezinha no interior moram três irmãs – Madalena, a mais velha, vivida por Naná Sodré, Carminha, a do meio, que toma forma no corpo de Agrinez Melo, e Tereza, a mais nova, que é laçada pelo trabalho de Roberta Marcina, vivem juntas. José (Madson de Paula) nutre um sentimento arrebatador e possessivo por Tereza. Nessa história, Carminha ama José, que ama Tereza, que ama Antônio – um viajante por quem a moça se apaixona, exatamente no dia em que José vai pedi-la em casamento. A trama se desenrola em função do tempo de espera de Tereza pela volta de Antônio, o que interfere na vida das personagens de forma decisiva. Musical e encorpado, o som de “Cordel…” é feito pelos atores em cena e pelo músico Diogo Lopes que produz a maior parte da trilha ao vivo com maestria, e esse som é, por si só uma personagem elíptica e pomposa: está sempre ali, nunca deixa a cena, e mesmo em seu silêncio vibra e repousa nos ouvidos.

Artesã e meticulosa é a encenação proposta por Samuel Santos que sugere uma mise-en-scène articulada com o espaço e muitíssimo irrigada pelas águas teatrais que banham da cenografia à iluminação, esta última por sua vez é soberba na sua execução, traz elipses belíssimas dessas passagens de tempo, dando ao espetáculo um sabor de fruta suculenta, assim como a cenografia manipulada pelos atores abrilhanta ainda mais o trabalho.

Conflituoso, o texto de Cláudia Barral é adaptado aqui para que se delicie ao som do grupo O Poste; um texto poderoso e montado ao redor do país, ganha na montagem dO Poste um contorno regional fortíssimo; e mais que forte e extremamente doloroso, o poder que é visto da brutalidade avassaladora do Amor contido nas palavras do texto é a entrega do elenco para tal material. Os olhos de Naná Sodré que vibram ao descascar das palavras; o semblante cartunesco, cômico e vibrante de Agrinez que transporta imagens mentais ao plano do real, a voz de todo o elenco, mas o assombro da voz de Madson de Paula que invade todos os ouvidos fazendo dançar as plurais coreografias que seu corpo pode tomar é de uma técnica incomum. Tudo isso num contraste rico com a delicadeza do trabalho proposto por Roberta Marcina, que dá a Tereza uma ingenuidade crível e incontestável. Inteiro e num uníssono de pedrarias preciosas, o elenco presenteia o público de forma clara e singela, transformando o espaço cênico e transportando a todos por uma viagem a esse Cordel tão amoroso quanto o próprio sentimento universal.

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