O Monstro Mulher | Crítica de “A Mulher Monstro”

por Vendo Teatro
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Por Luiz Diego Garcia
Recife, Novembro de 2019

O Monstro Mulher

Monstro: substantivo masculino; o que é contra a ordem regular da natureza; anomalia, deformidade.
Dicionário Online de Português

Ao longo do curso da história não houve período habitado pela paz e prosperidade tão somente. Houve períodos menos turbulentos, de fato, momentos de respiro e ascensão, flashs menos ácidos. Entretanto as rusgas nas páginas da história humana sempre estiveram ali: a desigualdade, a fome, a solidão, que seja. Sempre houve, e arrisco dizer que sempre há de haver, dor. Não vislumbro imensas soluções, muito menos promovo aqui um debate para tal; trago à luz dessas linhas pensamentos acerca da imortalidade do monstro humano que sempre esteve à espreita, ou mesmo protagonista, à luz do sol ou pelos cantos do escuro. E que ronda, total e completamente, o corpo do ator José Neto Barbosa, mente criativa por trás do processo do espetáculo “A Mulher Monstro”.

Barbosa, aqui, assina diversas funções da ficha técnica, passando pela encenação e figurino, o que por si só já o faz digno de notoriedade, visto que a proposta abordada, tanto dramatúrgica – baseada num conto de Caio Fernando Abreu – quanto cênica, é igualmente provocadora. Enjaulada, a Mulher de José Neto Barbosa se encontra mascarada, circense e animalesca desde o momento em que o público toma seus assentos; não há respiro de conforto ao longo das duas horas de espetáculo. Quando há humor, demasiado ácido, há também inquietude. O riso não é cúmplice da leveza. O riso monstruoso aqui é giz no quadro, é garfo no prato, é lgbtfobia, é racismo, é tudo, menos cúmplice da leveza.

Ao sugerir tal abordagem para sua Mulher, Barbosa faz uso de artifícios prontos: falas políticas da atual extrema direita fascista que assombra boa parte do ocidente do globo; mas principalmente do Brasil. O nome do atual mandatário não precisa sequer ser citado. A obviedade com a qual sua figura é centrada e posicionada para que a verborragia do espetáculo o atinja estuporada e veementemente o peito e as maçãs do rosto é clara. A Mulher monstruosa é aberta e conscientemente capaz de entender de política. Ela escolheu seu voto. Ela acredita cega e surdamente no que diz. Não é alienada ou trouxa, não foi enganada por meia dúzia de pessoas de lábia. A Mulher que está ali, proferindo tais palavras, sabe o que está dizendo e apesar de não ser de todo má, não está muito preocupada em ser empática.  

Permeando o discurso de ódio pronto advindo das inúmeras redes sociais que irresponsavelmente elegeram dois dos mais importantes mandatários das Américas, o texto também apresenta um fio que desliza sobre a história dos traços da pessoalidade desta figura que habita o centro de sua jaula. O texto labora sua tentativa de justificar de onde vêm os ressentimentos da tal Mulher, mas que, de tão polarizada à extrema direita, não obtém sucesso em humanizar esse monstro. Ainda que mesmo não justificável seja a monstruosidade de tal figura, sente-se empatia pela mesma. Seus traços esquizofrênicos produzidos com segurança por Barbosa – aqui um excelente intérprete dessa alegórica-absurda persona – dão contorno necessário para que se possa observar ali um transe surreal do movimento político habitante das camadas mais abastadas do país. Prontificado a ser impactante, titubeia às vezes a energia cênica ao se delongar por temas já dissertados; da religiosidade xiita e incólume ao racismo velado, o embate dessa figura com seus espectadores é imenso, mesmo que, aqui e ali, precise sublinhar o que já está em negrito.

“A Mulher Monstro” se despeja performática e necessária sobre o teatro brasileiro, mesmo que mais Monstro que Mulher, quão desalmada o seja, ainda segue, mesmo que por pouco, humana. Tramando assim em arames sua enjaulada figura absorta e arriscando sua integridade física, José Neto Barbosa tem realizado um trabalho de resistência e conscientização primoroso, aproximando cada vez mais sua teatralidade da arte que sabe modificadora e edificante; prontificado na linha de frente da batalha travada contra monstros políticos, o espetáculo permanece disposto e vivo após sua apresentação.

Monstro solto, por fim, quem ocupa a jaula?

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