Por Luiz Diego Garcia
Recife, Novembro de 2019
Dissonância Consonante
É possível distanciar-se de si para perceber-se; mas é impossível fazê-lo.
As dúvidas assolam a cabeça de Gregório. As dúvidas assolam o coração de Gregório. As dúvidas assolam os deuses, os filósofos e a natureza inteira.
Em “O Canto de Gregório” não há muito espaço para certezas, nem tanto para respostas, muito menos para retas afirmações. O espetáculo do Grupo Magiluth encenado em 2011 volta à cena agora na comemoração dos 15 anos do grupo com a dinamicidade que o presente talvez precise. Encerrando o mês de aniversário, o espetáculo dirigido por Pedro Vilela ilustra uma sequência de questionamentos múltiplos e freudianos dentro da cabeça-corpo de sua personagem título. O texto escrito por Paulo Santoro, que teve sua estreia pelas mãos de Antunes Filho em 2004, é sobre dúvidas mais do que qualquer coisa. Trazendo no elenco Pedro Wagner (como Gregório), Erivaldo Oliveira, Giordano Castro e Lucas Torres (os três anteriores interpretando alegorias e figuras históricas), o Magiluth se afirma enquanto fazedor de teatro justamente por fazê-lo extremo.
Uma mise-en-scène aqui limpa de extravagâncias permite aos atores um jogo extravagante. Transitando por personas que vão de Jesus a Buda, passando por multifacetados Sócrates, até o atormentado Gregório parece apto à loucura tendo em vista as figuras com as quais contracena. Questionador e impetuoso “O Canto de Gregório” faz do jogo cênico um espaço de experimentação filosófica.
O texto afiado na chaira extremamente bem humorada da boca de Giordano de Castro faz brilhar ao longo de toda a apresentação uma dança promovida por sobre o viés mais potente para as indagações questionadoras de Gregório: o humor. Não há demérito com o trabalho árduo que o ator tenha produzido, mas seu carisma em cena (e por carisma digo uma característica magnética ímpar e desvelada de explicações técnicas) é absoluto. Quando não está em cena, a cena sente sua falta. Contrastando com o sisudo e até talvez ingênuo Gregório produzido pelo ator/artesão Pedro Wagner, esses polos complementares de interpretação levam ao público o contraste necessário para que a cena transborde a própria cena e inunde os que assistem, invadindo as cabeças de todos os Gregórios ali presentes. Então Erivaldo Oliveira e Lucas Torres aproximam-se da geologia Magiluth para criar sedimentos rochosos firmes e ríspidos, que impulsionam a dramaturgia escrita para o extremo da dúvida, da raiva, da cumplicidade.
Optando por uma aproximação real com o espectador, em dado momento, um cigarro alternativo passa pela plateia, compartilhando-se ali um pouco de leveza de pensamento. Plateia no palco e palco na plateia, os limites são tensionados pela linguagem abordada. Sabendo seguramente que linguagem ali é, como traz Wittgenstein, “uma impressão de ter conseguido trazer à luz as ondas de pensamento que estavam confinadas dentro de mim”, o Gregório do Magiluth é mais humano que personagem.
Quando posto em dúvida, questiona-se, quando se distancia do maniqueísmo contagioso, afirma-se. Gregório não sabe se é bom. Gregório não sabe se é mau. Gregório sabe que, talvez, seja. Nessa atmosfera leitosa inundada de dúvidas “O Canto de Gregório” ressoa em alto e bom som para que seja escutado. Basta ouvir.