Foto: Renato Mangolin/Divulgação
Por Luiz Diego Garcia
Recife, Setembro de 2019
O brusco MA do Magiluth
Poucas horas antes da apresentação de “Apenas o Fim do Mundo” eu estava tendo meu dedo furado e apertado para o recolhimento de algumas gotas de sangue que viabilizariam um teste rápido de HIV, Hepatite e Sífilis. Ao receber os resultados rotineiros – negativos – da boca de uma funcionária da clínica, demonstro alívio imenso; ela pergunta o motivo do suspiro e eu digo que há sempre uma paranoia, mesmo sem exposição; falo da periodicidade com a qual faço os testes e que estava em tempo. Ela menciona a importância do uso de preservativos para toda e qualquer interação sexual, por cima dos óculos, como quem educa, e diz que deu oito resultados de HIV-positivo num tempo muito menor do que o de costume. Nove, ela se corrige. Fala sobre relações sexuais entre rapazes, principalmente, e sobre irresponsabilidades. Eu agradeço, dou boa noite e sigo até a porta, não antes sem ouvir um “Cuide-se sempre.”.
O universo LGBT convive com o estigma do HIV há pelo menos três décadas. Somente nas décadas de 80 e 90 do século passado cerca de 14 milhões de pessoas morreram em decorrência do vírus e suas doenças associadas, segundo a OMS. A epidemia deixou uma mancha trabalhosa na história, difícil de ser desmistificada; mancha esta que por muito tempo costurou, em letras escarlates, a retalhada história da comunidade LGBT.
Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro extinguiu o departamento da AIDS da pasta do Ministério da Saúde. Assim começa o espetáculo “Apenas o Fim do Mundo”, baseado no texto de Jean-Luc Lagarce que retrata a volta de um filho, primogênito e homem, à casa da mãe após mais de uma década. Ele é portador do vírus do HIV e morrerá poucos meses ou quase um ano depois desta visita. Lá estão sua irmã, a caçula, o irmão do meio e sua respectiva esposa, e sua já mencionada mãe. Tudo isso é revelado nos primeiros minutos de espetáculo de forma a dar o tom amargo que seguirá o caminhar itinerante pelas próximas horas. A peça se passa durante um domingo ou, como traz o texto, ao longo de um ano inteiro, em 1990.
Há uma inquietude latente na forma como esse filho é recepcionado, há um vazio por muito preenchido de mágoa, ressentimento, e tantas outras cócegas vividas e imaginadas por esse grupo familiar.
MA.
Uma exploração do espaço. Uma ressignificação. Não. Melhor. Uma hiper-significação do espaço. O arquiteto japonês Arata Isozaki conceitua MA como “um lugar onde uma vida é vivida, um espaço que só começa a fazer sentido quando existem indicações de vida humana.” A vida ali, naquela casa que em Recife é o MAMAM (Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães) onde a ação se passa em diversos espaços do museu, que em São Paulo fora o SESC Paulista, está preenchida de vida humana. O teatro do Magiluth possibilita o encontro e a presença humanos.
Preenchendo brusca e inquietantemente o espaço, a direção de arte de Guilherme Luigi (indicada ao Prêmio Shell este ano) promove uma leitura elegante, usual e cinematográfica – termo este usado da forma mais carinhosa possível – ao trabalho proposto. A iluminação que por vezes transita pelo amarelo-sépia também é atriz da cena; não há adornos supérfluos no teatro Magiluth, há teatro, muitíssimo teatro. Tanto teatro que, por mais que a mise-en-scène possa encher a vista, é o trabalho dos atores que promove em “Apenas o Fim do Mundo” uma experiência teatral brusca. Sim, brusca e afável, sim, bruscamente afável, sim, mais uma vez, brusca, atravessadora, inquietante, disruptiva e mais do que isso, teatral, muitíssimo teatral.
A encenação assinada por Giovana Soar e Luiz Fernando Marques possibilita o jogo, mas sem perder de vista suas regras. Não há papel pequeno nem ator coadjuvante no trabalho do grupo. Há uma ressonância cósmica no que é apresentado de forma que o alinhamento destes grandes homens é desdobrado em poder artístico. Mais instigante do que observar, aqui, quem fala, é observar quem ouve; magistral é o domínio da Palavra, tanto quando falada, mas, talvez, mais ainda, quando ouvida.
Em dado momento a mãe (Erivaldo Oliveira) é interrompida brevemente pelo filho (Pedro Wagner) em frente a um espelho imenso. “Eu falo!”, diz. Quanto é dito e quanto é ouvido é a medida da atmosfera de observação em tal cena. Manipulada com maestria pelos atores, a Palavra ao longo de “Apenas o Fim do Mundo” sugere um pesar que talvez nunca tenha sido dito de fato; um ressentir de Palavras imaginadas ou até mesmo trocadas em olhares. Domínio de cena é o trunfo maior do espetáculo, do trânsito pelas atmosferas ao delinear das Palavras que ganham muitíssimo até quando se propõem afetadas.
MA.
Numa rede complexa de entrelaçamentos dramatúrgicos o público é levado a olhar a casa de dentro de onde a casa está. Por dentro das paredes dos quartos, sentados no sofá da sala; no meio dos atores almoçamos em família, mas como visitantes, como o filho que retorna não nos sentimos em casa, não há comida para nós, nossa cadeira também é destoante das demais. É desconfortável o vazio que se personifica nas Palavras, nos olhares, nos ouvidos que ouvem o que talvez quisessem falar. É disforme a intensidade da inquietude apresentada pelo elenco, principalmente pelo trabalho de Mario Sérgio Cabral (indicado ao Prêmio APCA de Melhor Ator) que firmemente presenteia o espetáculo com uma performance grandiosa por sobre um texto tão somente vigoroso quanto aflitivo.
“Apenas o Fim do Mundo” encerra sóbrio e impactante, não resguarda sua dor, nem a nossa, não acolhe o sofrimento, termina num gesto que toma de arroubo e faz pensar que o silêncio teria sido mais confortável, menos agressivo; pensamos, como no texto, que pessoas silenciosas são bons ouvintes, mas nos calamos para que nos deixem em paz. O MA do Magiluth é também de maturidade, de coesão, de potência da verdade cênica sabendo-se teatro.
Finda a cena, me perco um pouco, tateio um abraço amigo, caminho pelas ruas sem saber exatamente como voltar pra casa, tenho o impulso de ir até a casa de mamãe, de dormir por lá essa noite, de tomar sua canja de galinha tão harmônica nesses momentos de incoerência mental; mas sigo até meu apartamento, bebo um copo d’água gelada, e durmo. É esse MA que habita também; da luta, sobretudo, humana, sem se deixar apenas restrita ao regional familiar, fazendo-se, assim, universal.
A potência da Palavra e do Silêncio ganham nova dimensão neste espetáculo.
Lindo texto!