Foto: Divulgação
Recife, Fevereiro de 2025
O que há de universal no mito de Ícaro, há na condição humana; são indissociáveis. A história do jovem que voa demasiado perto do sol e cai em sua própria ambição é apenas uma parte de uma narrativa maior que envolve labirintos, fios de esperança e a complexa relação entre pais e filhos. Na mitologia grega, o labirinto de Creta, construído por Dédalo, é o palco de histórias entrelaçadas: a de Teseu, que enfrenta o Minotauro com a ajuda do fio de Ariadne; a de Dédalo, o arquiteto genial que também é prisioneiro de sua própria criação; e a de Ícaro, o filho que paga o preço pela ambição do pai. Essas narrativas falam de coragem, liberdade, amor e, sobretudo, das consequências de nossas escolhas. O Labirinto de Ícaro, escrita e dirigida por Guara Rios e realizada pela PulsAção Cia de Teatro, tenta resgatar essa riqueza simbólica, mas encontra alguns desafios ao traduzir essa complexidade para o palco.
A peça propõe uma releitura contemporânea do mito, focando no jovem Ícaro preso em um labirinto emocional e físico, à procura do pai desaparecido. A ideia de explorar o labirinto como metáfora para a mente humana é, sem dúvida, instigante e cheia de potencial. Um dos pontos altos da montagem é o ator principal, que assume sozinho a tarefa de conduzir o monólogo. Ele demonstra certa versatilidade e comprometimento, especialmente quando incorpora as figuras de Ariadne e Teseu. Esses momentos, em que o ator transita entre personagens, são os mais vibrantes da peça, trazendo uma dinâmica que contrasta com a monotonia do texto. A interpretação de Ariadne, em particular, é carregada de delicadeza, enquanto Teseu ganha uma presença cênica que combina sobriedade e força. Essas transformações revelam o potencial do ator, que parece mais à vontade quando pode explorar outras personas além de Ícaro. No entanto, há uma sensação de que a peça aposta mais na vontade de falar do que na capacidade de se fazer ouvir. O texto, embora repleto de boas intenções, carece de uma costura mais sólida, deixando as ideias, por vezes, monocórdicas.
Trazer os mitos clássicos para uma narrativa queer é, sem dúvida, um dos aspectos mais potentes da peça. A releitura de Ícaro como uma figura que questiona não apenas sua relação com o pai, mas também sua identidade e lugar no mundo, é uma proposta ousada e necessária. No entanto, essa abordagem não é explorada em toda sua profundidade. A peça toca no tema sem mergulhar nas camadas mais complexas que uma narrativa queer poderia oferecer. O resultado é uma ideia promissora que carece de desenvolvimento, causando menos impacto do que o desejado. Há uma vontade genuína de falar sobre temas urgentes, mas a execução, em alguns momentos, não está à altura da ambição.
A direção de Guara Rios opta por um minimalismo que, em teoria, poderia funcionar para destacar a solidão e o desespero do protagonista. No entanto, a falta de elementos cênicos mais robustos e uma iluminação que nem sempre cumpre seu papel de criar atmosfera acabam por esvaziar o espaço, em vez de enchê-lo de significado. O labirinto, que deveria ser palpável e opressor, acaba parecendo apenas um cenário vazio, sem a densidade necessária para sustentar a tensão dramática. A encenação trilha por uma mise-en-scène que, embora bem-intencionada, se apresenta pouco colaborativa para com os objetivos do espetáculo. A escolha de uma poética proposta como guia de interpretação não proporciona ao público uma experiência genuína de inquietude emocional ou política, mas há momentos que sugerem um caminho promissor. A trilha sonora, que poderia ser um elemento crucial para criar a atmosfera labiríntica, acaba sendo um elemento de manutenção da atmosfera. Os sons ecoam de forma pouco criativa, sem surpresas ou camadas que possam ampliar a experiência sensorial do público. No entanto, há um destaque: o momento musical em que o personagem dança ao som de Freedom um feat poderoso de Beyoncé e Kendrick Lamar. Ali, a luz de contra gera uma sombra e uma silhueta impactantes, criando um dos pontos altos da apresentação. Esse momento singular mostra o potencial da peça quando todos os elementos cênicos convergem de forma harmoniosa.
O mais poderoso em um produto artístico é sua capacidade de remodelar o real em detrimento do lógico para que, desta forma, ao sublimar a realidade, tenha alcance ressignificador. O Labirinto de Ícaro ousa estar em cena com uma proposta que busca ressignificar mitos clássicos para os dias atuais, mas essa ousadia temática nem sempre é acompanhada de uma execução à altura. A peça conta demais e mostra de menos; no entanto, é importante reconhecer o mérito da tentativa e o potencial que reside na proposta. E O Labirinto de Ícaro, com suas qualidades e desafios, nos lembra que toda jornada, por mais labiríntica que seja, pode levar a descobertas valiosas.
Vendo Teatro – Incentivo Funcultura 2022/2023
Proponente, coordenadora e criadora de conteúdo: Aline Lima
Produção Executiva: Sabrina Pontual
Críticos teatrais: Luiz Diego Garcia
Cleyton Nóbrega
Lucas Oliveira
Gabrielle Pires
Coordenador crítico: Luiz Diego Garcia
Jornalista: Paulo Ricardo Mendes
Designer Gráfico: Allan Martins