Centelha nos Olhos, Centelha na Cena | Crítica de Sinapse Darwin

por Vendo Teatro
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Foto: Tiago Lima

Natal, Fevereiro de 2025
Por Lucas Barreto, Colaborador Crítico
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia

Muito se pode refletir sobre o que significa fazer teatro, mas nada abala a concepção de que esta é uma grande arte de contar histórias. Por muito tempo, o conteúdo dessa história a ser contada foi o mais importante aos olhos dos artistas e da plateia, com dramaturgias densas, complexas e intrigantes, recheadas de personagens profundas e marcantes. O conteúdo da história não pode perder jamais a sua importância, isso é evidente, mas o teatro contemporâneo tem buscado, cada vez mais, focar na forma com que se escolhe contar determinada história. O que faz do teatro o Teatro para que cada um desses elementos possa ser desconstruído ou potencializado? De que modo uma história aparentemente desinteressante pode ganhar vida a partir do modo teatral de contá-la ao público? É cambaleando através dessas interrogações que a produtora Casa de Zoé apresenta o seu espetáculo Sinapse Darwin.

Após circular por dez cidades em três estados do Nordeste, a produtora natalense voltou à sua terra de origem para apresentar o espetáculo ao seu público conterrâneo nesse início de fevereiro. A produção esteve, inclusive, na programação do último Festival Recife de Teatro Nacional, com apresentações realizadas ao ar livre em estrutura própria montada no calçadão da Rua da Aurora. É nesse mesmo formato que o espetáculo é apresentado no Complexo Cultural Rampa, na capital potiguar: ao ar livre, com uma estrutura de palco e de iluminação montada apenas para essa exibição.

Com visuais de estética industrial assinados por João Marcelino (que também ficou responsável pelos figurinos) e Rogério Ferraz (responsável por desenhar uma iluminação de tirar o fôlego), a peça busca apenas contar a história de Charles Darwin, cientista britânico que teorizou e firmou o evolucionismo como base da ciência sobre a compreensão das origens do universo, da vida terrestre e da humanidade. Essa história de caráter extremamente cerebral e racional poderia, obviamente, ser contada de diversas maneiras, mas o que a equipe de Casa de Zoé escolhe firmemente, a todo instante, é o que de mais teatral puder existir, e o resultado é nada menos do que deslumbrante.

Partindo da origem da vida (e do próprio planeta), a peça nos mostra como o pequeno Charlie deixou de ser uma mera criança curiosa e passou a ser o cientista Charles Darwin dedicado à compreensão plena de toda a vida que o rodeia. A trilha sonora (dirigida por Caio Padilha) de rock ópera e progressivo traz à mente bandas como Queen e Pink Floyd, que também inspira os elementos visuais numa mistura de The Wall com a estética do universo de Sgt. Peppers, o álbum mais psicodélico da também britânica Beatles. A comédia bebe de Monty Python e as personagens parecem saídas do País das Maravilhas de Lewis Carroll (a lagarta que interroga Alice sobre sua própria identidade é uma inspiração direta levada à cena). Todos esses elementos introduzem a jornada do nosso protagonista e aos poucos vão se diluindo numa peça que vai ganhando fluidez e leveza à medida que Charles Darwin começa a amadurecer e a, ele próprio, sair da vida britânica rumo ao entendimento mais profundo de todo o planeta.

Nesse momento, as armações de ferro que delimitam o espaço cênico convidam o vento e o som do rio para a brincadeira e o que se produz com artifícios simples, como panos coloridos e varas de bambu, é um resultado enfeitiçante e inesquecível. Essa é uma peça inteira em blablação na qual quase nenhuma das palavras serve à inteligibilidade, trazendo apenas mais uma textura sonora para a brincadeira. Partindo de uma história tão científica e inesperada, a companhia nos convida a abrir mão da racionalidade, tão querida ao seu protagonista, para mergulhar nas sensações vividas pelo cientista em cada etapa de sua jornada teórica. Em Sinapse Darwin, somos lembrados que a arte e a ciência talvez surjam da mesma experiência humana: a nossa total rendição ao encantamento.

Muito mais do que explicar o evolucionismo ao seu público, a direção e a dramaturgia de César Ferrario buscam relembrar ao público que investigar a vida e se render à curiosidade é o que faz de nós seres humanos. Talvez por isso não precisemos de um elenco que incorpore personagens complexas e profundas, mas apenas de um grupo que se recuse a abrir mão da brincadeira teatral. É um jogo cênico ousado e difícil, mas a equipe em cena (todos os atores e também os músicos) se nega a deixar a peteca cair; o brilho nos olhos é tão inegável que se torna impossível não entrar no jogo também.

E, quando totalmente imersos nesse jogo, vemos um Darwin já idoso sentado em sua mesa e o imenso rosto de metal que compõe o cenário vira seus olhos de holofotes para nós, quase nos cegando com o brilho intenso de seus canhões de luz, é inevitável que não nos sintamos observados, analisados e investigados. Nesse momento, de forma muito sutil e delicada, a peça nos lembra que toda aquela pesquisa científica de Darwin e artística do grupo em cena nada mais é do que uma investigação sobre cada um de nós ali presentes. De todas as lindas imagens construídas na odisseia de rock ópera futurista e artesanal que é Sinapse Darwin, eu fico com esse momento gravado na memória: o encontro dos olhos do cientista com os olhos das pessoas ali presentes. A lembrança de que investigar nossa própria humanidade deve ser um processo feito com muito encantamento, com muita leveza e com muito carinho. O conteúdo da história pode ser qualquer um quando a forma de contá-la for recheada de brilho nos olhos e de amor pela beleza da vida.

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