Kassandra: Ecos do Mito | Crítica de Kassandra

por Vendo Teatro
0 comentário

Foto: Divulgação

Há espetáculos que reverberam como um sussurro que atravessa tempos e espaços, e Kassandra, dirigida por Adriane Mottola, é uma dessas experiências raras. Uma peça, uma jornada ao âmago do que significa existir à margem, na interseção entre o pertencimento e o exílio. O texto assinado pelo franco-uruguaio Sergio Blanco (que só permite ser montado em inglês) nos conduz pelas ruínas da mitologia clássica para ressignificar Cassandra como Kassandra: uma mulher trans, migrante e dissidente, que nos encara com a coragem de quem transforma sua vulnerabilidade em força bruta.

Sob a pele de Estrela Dinn, Kassandra não é só uma personagem, mas um símbolo transpirando humanidade. Falando um inglês propositalmente fragmentado, ela transita entre risadas amargas e lágrimas sinceras, entre o épico e o banal. Fala de Troia e Pernalonga com a mesma intensidade, nos fazendo rir enquanto arranca de nós uma verdade desconfortável: somos cúmplices de uma história de exclusões. Coexiste ali sua fragilidade e, ao mesmo tempo, sua resiliência feroz, uma dualidade que reflete a condição humana em toda sua complexidade.

O espaço cênico, transformado em um bar noturno decadente, é parte essencial da narrativa. Cada detalhe — a iluminação delicadamente sombria, a trilha sonora densa de Paola Kirst — dissolve as fronteiras entre palco e plateia. Aqui, não somos espectadores passivos, mas cúmplices de uma confissão que ecoa nos nossos próprios abismos. Adriane Mottola conduz essa sinfonia de vulnerabilidades com maestria, permitindo que o espaço dialogue com a história e amplifique suas camadas de significados.

Há profundo tônus na performance de Estrela Dinn, que vai além da mimetização do mitológico: ela traz consigo séculos de silenciamento, injustiças e resistências. Sua Kassandra não pede piedade; exige ser ouvida, vista e reconhecida; e agradece por isso, e mostra gentileza à quem a ouve. Ela repete “thank you for listening to me, you’re really my friends” (ou obrigada por me ouvirem, vocês são realmente meus amigos). Cada gesto e palavra carregam o peso de quem transita por múltiplas exclusões, seja como estrangeira em terras alheias, no corpo, ou até no tempo. E é nesse deslocamento que ela encontra sua voz, abrindo um diálogo feroz com as angústias e esperanças de um mundo que ainda luta para enxergar o outro.

Blanco, com sua escrita irônica e afiada, desafia o público a encarar temas como imigração, marginalidade e dissidência de gênero sem filtros ou concessões. Ainda assim, há beleza e poesia nessa desconstrução. A fusão entre o mítico e o cotidiano cria uma tensão que nos obriga a refletir como seres que testemunham e perpetuam exclusões. Ao reescrever o mito de Cassandra, o texto catapulta a tragédia clássica para falar do presente, ressignificando narrativas que tantas vezes foram relegadas ao silêncio.

Assistir a Kassandra é vivenciar um teatro essencial: política, poética e transformadora. É ser atravessado por histórias que refletem a nossa humanidade, que a provocam e a reconfiguram. Carregamos algo de Kassandra ao fim — um lembrete de sua força, de suas dores e de sua capacidade de rir. Kassandra ecoa como um chamado poderoso: a olhar para a outra, para o mito e, finalmente, para dentro. E, como ela mesma nos sussurra, “o grito que vocês ignoram hoje será a música que ecoará amanhã”.

0 comentário
Subscribe
Notify of
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments

Related Posts