Foto: Camila Macedo
Na última sexta-cheira, 22 de setembro, o Teatro de Dona Lindíssima, em Tebas (PE), foi palco da 15ª montagem do Grupo Magiluth, “Édipo REC”, uma zuada trágica que reimagina o texto de Sófocles sob uma lente hiperconectada e profundamente contemporânea na sua estrutura. Como um espelho espatifado no chão mas ainda carregando o reflexo do mundo, a obra transporta o mito clássico para um terreno híbrido, lamaçoso e cheio de contradições bluetooth, onde as tradições do teatro grego dialogam com as inquietações e excessos do dia de hoje, de ontem, mas nunca de amanhã, já que somos todas inimigas do fim.
O título “REC” opera sua própria câmera e alude ao ato de gravar, à cidade de Recife e à sensação de estarmos constantemente na frente das lentes, e quem é você fora dos stories, não é mesmo? Capturados por câmeras que não apenas registram, mas reinterpretam a realidade, aqui em Tebas-Lindu, esse conceito é explorado de maneira central no espetáculo, com o uso de câmeras ao vivo projetando imagens que flertam com a carnavalização e canibalização, borrando as fronteiras entre realidade e representação. O palco aqui vira uma blitz lei seca onde todo mundo bebeu; um lugar de encenação, mas um espaço de vigilância e questionamento: quem está assistindo? E quem está sendo assistido?
Sob a direção desgovernada, absorta e embriagada de Luiz Fernando Marques Lubi, o espetáculo se desenrola em dois eventos distintos: uma festa-enterro e um funeral-festejo marcados por contrastes, o primeiro, um frenesi sensorial que transforma o palco em uma boate que vai dos clássicos das ursas setentistas ao passinho dos nevados, um caos em profusão que tenta ser orquestrado por um Drag-Coro e por um Câmera-Corifeu. Aqui, o Recife carnavalesco — e por extensão, o mundo quase que inteirinho mesmo em pedaços — dança para esquecer suas feridas, ainda que estas sejam constantemente reabertas.
Já o segundo ato mergulha em uma Tebas — ou será mesmo que estamos finalmente em Recife? — devastada por pragas, corrupção e desesperança. A festa cede espaço ao desespero, e a montagem ganha um tom de catástrofe iminente. Essa transição é conduzida com maestria pelo elenco, especialmente por Pedro Wagner, que encarna um Tirésias grave e inescapável, e por Nash Laila, cuja Jocasta subverte arquétipos femininos com uma presença cênica potente e visceral. A química entre Nash e Giordano Castro (Édipo) cria momentos de lirismo e tensão, oferecendo ao público uma tragédia que é ao mesmo tempo íntima e universal. O Coro, aqui transformado em uma figura bicha-bichérrima dona do seu próprio Cabaré Diversiones representada por Erivaldo Oliveira, lança provocações afiadas desde o prólogo, com humor e ironia que desarmam. “A vida é decepcionante? É decepcionante! Mas é isso que temos”, declara, encapsulando o espírito tragicômico da obra. O Coro não apenas comenta a ação, mas a ressignifica, aproximando o mito grego das incertezas do mundo contemporâneo.
Confusão grande que apesar de ter cabo mágico que não funcionou ou mesmo feitiçaria dos sem fio — como o descompasso ocasional nas projeções de vídeo —, a performance já estava em profusão, transformando falhas em potência criativa. Esses momentos de vídeo travado por causa do 4g do LariCel estão longe de comprometerem a experiência, mas sim sublinharam a cumplicidade que o Magiluth construiu com o público ao longo de 20 anos de trajetória. No teatro de “Édipo REC”, o erro não é apenas tolerado, mas incorporado, tornando-se uma fresta por onde a teatralidade se expande. Afinal, sempre é possível correr depois de tropeçar.
Embora “Édipo REC” não ofereça respostas — nem se propõe a tal — fáceis, suas perguntas reverberam. O que significa felicidade em um mundo fragmentado? Como resistir quando o destino parece traçado? Essas reflexões se entrelaçam com a própria estrutura da montagem, que, ao usar câmeras, projeções e improvisações, questiona os limites do teatro como arte e resistência.
Ao final, a plateia retorna bamba à realidade, que sempre esteve ali, ela, a tão temida, tão quista, e tão evitada realidade; já que teatro é, por sinal, também, realidade. “Édipo REC” deixa um rastro de merda, confete, cachaça, varizes e inquietação. Estão aqui no devir o espetáculo e o gesto politizante, temos uma celebração do fazer teatral como espaço/arte de investigação e catarse — mesmo que o orgasmo do terror e da piedade venham com sabores novos e cibernéticos —. O Magiluth, com seu tesão suado cheirando a loló e 3por10, é bem desenrolado ao desconstruir e reinventar mitos, se joga na bagunça, mente, tripudia, mas entrega teatralidades ímpares na sua incólume crença de que enquanto estivermos juntos talvez haja felicidade para os mortais.
Vendo Teatro – Incentivo Funcultura 2022/2023
Proponente, coordenadora e criadora de conteúdo: Aline Lima
Produção Executiva: Sabrina Pontual
Críticos teatrais: Luiz Diego Garcia
Cleyton Nóbrega
Lucas Oliveira
Gabrielle Pires
Coordenador crítico: Luiz Diego Garcia
Jornalista: Paulo Ricardo Mendes
Designer Gráfico: Allan Martins