Foto: Divulgação
Por Paulo Ricardo Mendes
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Janeiro de 2023
Quem clareia o breu
De sua nudez meia verdade?
Quem desmancha o véu
E alveja descendente identidade? (…)
Trecho da música Breu – Xênia França
Em 2014, o cantor, compositor e também autor Geraldo Maia lançou o seu primeiro livro intitulado “Breu”, cujo texto, escrito em formato de poema, aborda a experiências e relação da morte da sua mãe e a descoberta da homossexualidade. De modo não ficcional, mas confessional, o autor escancara entre linhas e versos as sequelas desses fatos e como foi lidar com eles ainda tão novo, a partir dos 5 anos de idade. Anos depois, a obra ganhou uma nova versão e foi relançada pela Editora Confraria dos Ventos.
Já em 2019, o livro de Geraldo ganhou uma nova roupagem, dessa vez tomou forma e vida em cena com a peça homônima do Coletivo Grão Comum, interpretada e dirigida pelo ator Júnior Aguiar, com codireção de Asaías Rodrigues. Após pisar em alguns palcos a fora, o ator volta ao Recife para apresentar no Teatro Barreto Junior o monólogo Breu na 29º edição do Janeiro de Grandes Espetáculos. Vale ressaltar que o grupo havia desenvolvido anteriormente uma pesquisa de criação num projeto chamado trilogia vermelha, espetáculos baseados nas biografias do cineasta Glauber Rocha, do religioso dom Helder Câmara e do educador Paulo Freire.
Na peça Breu, ao entrar no Teatro, os elementos já estão postos. Em cena: areia, velas, crucifixo, uma espécie de manto em crochê e um jarro de flores, somado ao som entoado por uma marcha fúnebre, que nos dão indícios de que estamos prestes a participar de um velório; no entanto, entre todos esses símbolos presentes, o que chama atenção de imediato é um pano vermelho comprido pendurado do teto até o palco – que até então não fica claro, mas depois do início da encenação fica mais evidente que se trata do elo que o ligava a mãe, representando o cordão umbilical.
Entre a plateia, o ator surge todo de preto carregando a passos lentos um buquê de rosas como se estivesse prestes a se despedir de alguém ou de algo, mas de forma literal, a partida mesmo se dá, quando o personagem beija o pano vermelho de forma afetuosa/saudosa e em seguida o corta, buscando representar ali o rompimento do laço materno. A palavra “Breu” em cena é usada no sentido mais evidente, se referindo a escuridão, o que consequentemente implica na ausência de luz; representando assim, todos os demônios e sentimentos negativos que pairavam na vida do personagem.
Na adaptação da peça ao livro, o texto ganha uma dramaticidade visceral do ator Junior Aguiar que parece estar totalmente mergulhado naquelas histórias que não são confortáveis de contar. Ao mesmo tempo, a peça também faz uso das sutilezas e usa livremente da licença poética, assim como a obra que foi adaptada, para contar a histórias, nas quais as ações e escolhas dos objetos cênicos estão carregados de sentidos. Seja na conotação da morte e vida reduzida a uma caixinha de fósforo, sendo o palito, o corpo daquela mãe que está sendo velado, ou mesmo no balde derramado sobre o corpo que representa toda a lágrima derramada pela partida, até mesmo no balão de água sendo estourado no rosto do ator para simbolizar o gozo e do liquido branco representando o leite materno. Interessante observar que a obra e a adaptação também convergem e se atravessam em alguns pontos na vida do próprio Junior, sendo por exemplo, na perda da sua mãe ainda cedo, como relata o ator após finalizar a peça.
Ao contar o drama do personagem, a peça passa a ser dividida basicamente em duas situações: no primeiro momento na morte da mãe, que nos convida a pensar sobre a relação materna; sobre perda e a importância da infância para a formação do adulto. Já no segundo momento, quando vai se construindo a temática ligada a homossexualidade, é retratada em cena o bullying na escola justificado na trama pelos trejeitos relacionados a feminilidade; o trauma que sofrera após a professora expor que tinha “letra de mulher” e o abuso sexual que sofreu ainda jovem, aliado a descoberta do prazer e a dependência emocional à aquela figura masculina chamada Melquíades – expondo assim mais uma morte, dessa vez da sua castidade e inocência. Nesse momento, um outro ator que estava na plateia contracena com o personagem, ajudando a criar uma atmosfera de prazer e tensão, contada na narrativa.
De um modo geral, o espetáculo é valioso e tem potencial de conectar o público com a história, a partir do texto, da atuação sensível e de todas as representações simbólicas, suscitando ponderações acerca de ciclos, da dicotomia do nascer e morrer, trazendo também reflexões sobre a saúde mental, problemática que vem acometendo cada vez mais pessoas jovens no mundo inteiro. Inclusive, em um dos momentos da história, o mesmo cordão umbilical que é partido no início da peça, que representa o nascimento e o rompimento do laço, na sequência passa a ser usado como um objeto de aprisionamento ao ser enrolado no pescoço, como se o personagem estivesse sendo sufocado por todos aquelas pensamentos negativos, numa tentativa também de suicídio – desfecho trágico encontrado muitas vezes pelos jovens que estão passando por problemas psicológicos.
Nos minutos conclusivos da peça, as flores que inicialmente são usadas no contexto de despedida mudam de sentido e passam a serem usadas num tom mais celebrativo. Mas não só elas. Após se despir de tudo, o ator retoma ao palco vestido de branco, carregado de um semblante mais leve, deixando escapar até um sorriso; do mesmo modo, a música de fundo ganha uma natureza musical saudosista mas ainda sim de festividade. Diante disso, a sensação final que dá é que depois de quase uma hora de desabafo, aquele homem encontra naquelas palavras expurgadas a sua libertação. Assim, o breu parece ter se transformado em luz.
Por fim, o ator desce já a passos mais rápidos as escadas do palco, como se estivesse correndo atrás do tempo perdido, desaparecendo de vista em seguida, restando ali em cena as lembranças, representadas por sua vez, pelo quadro da sua mãe.