Foto: Divulgação
Por Lucas Oliveira
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Abril de 2022
Entro, sento, contemplo o conforto do teatro Luiz Mendonça, a vinheta toca e a luz apaga gradativamente. Nesse momento quando a luz apaga a gente geralmente sente alguma coisa, algo vai começar tão próximo, mas eu nessa hora não senti nada. Nada esperei. Aí os bailarinos entraram, estenderam sobre o palco um mosaico de tecidos, tudo muito cuidadoso, consciente, dilatante. Ao estenderem este mosaico eles instauram o espetáculo, tercem um espaço no tempo, um outro lugar. A luz de todo palco vai vibrar, agora está ocupado por essa teia. Eu me pergunto: “Irão dançar? Irão dizer?” já passo a esperar por tudo. É tocante a sensibilidade de como se inicia o espetáculo Encantado da Cia de Lia Rodrigues, parte da programação do Festival Trema de 2022.
Caso você que me lê, me lê interessado por saber de técnicas, deixo salientes minhas considerações ao processo de imersão proposto pelo espetáculo, tudo que eles têm está em cena, exposto: corpos, luz, tecido e som; e tudo isso é a maior completude que pode existir nesse momento. O espetáculo não só é imaginado, ele se desenvolve esteticamente nos olhos, à vista, não deixa depender que o público entre, ele insere.
Já diante de outro lugar, os bailarinos saem, o que entra são vários corpos formando um corpo só, em silêncio, nus. Aqueles corpos que formam um corpo só, me indagam com nitidez “o que é o corpo?” O corpo somos nós, é a ferramenta e o objeto. A teia, o mosaico, o emaranhado de tecidos é o suporte para o que se quer dizer, assim como é a língua para a fala, a letra para a palavra, o gesto para o sentido. É o suporte que principia a estética e o objeto a ideia, e no movimento de se entranhar, em cinco minutos, tudo começa a ser uma coisa só.
O corpo é cenário, que é teia, que é tecido, que é objeto. Tudo vive, tudo é vida e quer viver. Nascem a partir da entrega, da propriedade da fala do corpo, do rasgar da subjetividade mais sensível possível. Os encantados ganham matéria na interação de muitos, de todos os elementos, instauram em nós plateia um princípio de maravilha: a da possibilidade, da potencialidade, do corpo e do gesto; de modo que como uma graça, eles rodopiam e dançam, e fazem sons, figuras múltiplas na minha frente.
O que aquelas figuras refletem? Me pergunto vidrado, com todo o corpo quente enterrado na cadeira do teatro, de olhos arregalados e duros. Os encantados são feras, humanos, sem substantivo que dê nome, ou vários que digam uma e a mesma coisa somente. Vejo ali Eguguns de África ganhando vida fora do peji, vejo rainhas, denúncias às estruturas políticas e sociais que geralmente nos predem, vejo a androgenia dos corpos, a identidade na pele, no jeito do corpo, vejo espíritos do meu ilê, ancestrais, atemporais. Partitura distópica, e o rito e o ritual.
Embora haja uma visível vida e propriedade no espetáculo, há também transparente muita técnica nas construções feitas ao público. Cito aqui o cuidado e a ressignificação das possibilidades do uso de tecidos, seus caimentos, textura, estampa, a proposta é tão intima a si mesmo que além de ser uma coisa só, se come, se nutre de si, come quem vê, devora, provoca e convida. A maravilha mais uma vez se mostra presente. Maravilha é poder ver a vida sendo formada, o nada virando tudo, o inanimado ganhando movimento.
A concepção de dança que a Cia de Lia Rodrigues mostra é a delicadeza de um gesto bélico, forte, denso, que lhe aguça as subjetividades. Ainda estou de corpo quente, e o que me mantém assim é essa dança pantomímica, tão contemporânea quanto primária. Atemporalizada. Esses movimentos vêm de terreiros, quilombos, de comunidades tradicionais; das transformações que o tempo promove em tudo, porque os corpos de lá estão ali trazendo às vistas o passinho da periferia, o vogue, o clássico, a rua, o rito, o movimento da vida. O rito ao rito, uma metalinguagem sensível e pouco aparente, mas ali, decisiva para aquele corpo de vários corpos que dança.
Quanta intensidade na consciência do corpo e da dança, quanta intensidade na construção da quebra e da metamorfose. Depois da possibilidade e da mistura, da brincadeira com o sexo, da evocação do inanimado, da materialização do que não morreu e do que não viveu, depois de distorcer a física, abrir o tempo, as manifestações cessam, tudo para, tudo acalma, o corpo sai. A Cia de Lia Rodrigues recebe aplausos demorados, frenéticos e eu vibro – ainda quente e meus olhos vivos, dentro de mim o espetáculo não para, respiro fundo ainda sentado na cadeira tendo sentido o que eu senti. Caso você que me lê, me lê interessado em saber de sentimentos, concluo que quase nada do que escrevi aqui dirá muito sobre este espetáculo, compartilhar das presenças das cênicas avassala a opinião de qualquer crítico, de qualquer gosto e nem é sobre gostar. Após alguns minutos saio discretamente do teatro, desviando conhecidos e desconhecidos, lá fora chove, é outono, mas nada me limita, depois de tudo o que vi e vivi, vou pela chuva mesmo.