Manifesto Marginal | Crítica de Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré

por Vendo Teatro
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Foto: Vinícius Eliziário

Por Ananda Neres
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Abril de 2022

“Os que pretendem separar o teatro da política pretendem conduzir-nos ao erro – e essa é uma atitude política.” (Augusto Boal)

Mensagens encontradas em garrafas estão no imaginário popular. Geralmente, são cartas para um futuro ou para um amor, um mapa do tesouro ou um pedido de socorro. Que mensagens são possíveis encontrar numa garrafa pet na beira de uma maré do Recife?

Para descobrir, adentro o teatro Hermilo Borba Filho, no chão, centenas de conchas guiam o caminho e delimitam o espaço cênico. O aroma e os sons da sala me transportam para uma outra atmosfera. Transporto o meu olhar para a cena, nela, cinco pessoas se apinham numa pequena escada-barco, ao fundo, um imenso painel-barraco compõe a paisagem. Estou na maré.

Vamos conhecendo as narrativas a partir de monólogos. Neles, os temas são diversos, de extermínio da população pela polícia à exploração do trabalho, de racismo ao estupro, das questões de gênero ao vício, as mazelas diárias das periferias são denunciadas em cena. Possuem em comum a violência e as populações majoritariamente negras à margem, como protagonistas. Além disso, sobressai aos ouvidos o texto carregado de oralidade, numa prosódia sonora e poética.

A multiplicidade na temática dos monólogos também se faz presente em suas potencialidades expressivas e técnicas. Na cena de HBlynda Morais, o excesso de carga dramática parece não se desenvolver. O tom agudo choroso é assumido, e, nele, não há mudança na entonação. No teatro, além da emoção, é necessária a palavra. Elemento tão valorizado e trabalhado no texto de Leite, mas, por muitas vezes incompreensível na cena em questão. No mesmo sentido, no solo de Fagner Felix, há uma fragilidade no dizer e no corporificar a palavra. Destoando do vigor do mangue. 

Contudo, se na construção dos monólogos são privilegiadas as denúncias, por outro lado, nas cenas coletivas busca-se reescrever essas narrativas de racismo e violência. Numa das cenas mais poéticas, o grupo evoca e reverencia grandes personalidades negras do campo das artes a nível nacional, mas, principalmente, a nível estadual. Artistas pernambucanos contemporâneos que estão hoje na lida para produzir e viver de arte. Marginais. Pela negrura da pele, pelo gênero, pelo poder aquisitivo. Assume-se a marginalidade para subverter seu pejorativo sentido usual. Às margens, há vida e cultura, há trabalhadores e sonhos. Artistas que elaboram novas narrativas, com códigos, símbolos e gramáticas próprias. Uma poética marginal. 

No coletivo das Narrativas…., as poucas fragilidades são superadas.  O que aponta para uma metodologia clara: no coletivo somos mais fortes.

Como não poderia ser de outra forma ao tratarmos de populações periféricas, além da questão racial, o trabalho também é um tema em destaque. Na pandemia global da covid-19, incontáveis artistas perderam o sustento, dentro da estatística está Anderson Leite, autor da dramaturgia, ator e encenador do espetáculo. Sem possibilidade de dar prosseguimento ao seu fazer artístico pelos fechamentos de casas de espetáculo e pela ausência de um auxílio emergencial efetivo por parte do Estado para a categoria em que está inserido, ele volta à família na comunidade da Ponte do Pina, em Recife, e passa a trabalhar com a pesca artesanal de marisco e sururu. 

É deste contexto que nasce o texto. Na margem, à margem. Parte da pesquisa POÉTICà MARGEM, do Grupo São Gens. Na boca de um dos personagens, coincidentemente ou não interpretado pelo autor, também ficamos sabendo da pandemia e seus efeitos no trabalhador, que precisou se arriscar. A cidade estava parada por decreto e ele diz algo como “mesmo sem sentir gosto, a família precisa se alimentar”. Fica nítido qual parte da cidade pôde parar. 

Com hospitais lotados, sem auxílio, com salário reduzido, com possibilidade de ainda assim perder o emprego, o que resta ao assalariado, ao ambulante, ao autônomo? Morrer de gripe ou morrer de fome? A política burguesa do #FicaEmCasa colocou nas mãos dos trabalhadores a responsabilidade que era do Estado e buscou criminalizar qualquer tentativa de movimento operário que reivindicasse condições de vida e sobrevivência nesse período.

Em outro momento, numa cena coletiva, o próprio labor artístico é colocado em debate. O que pode um grupo de teatro marginal que não frequentou universidade? Tem a mesma condição aquele que vai ao ensaio com fome ou não tem dinheiro suficiente para se locomover até o local? Como consumir arte sem políticas públicas que subsidiem o acesso? Apresentado na programação gratuita do festival Trema!, financiado pelo Funcultura, Narrativas encontradas numa garrafa pet na beira da maré emociona e incomoda ao denunciar o que se insiste em ignorar. Ao passo em que revigora,  ao impulsionar e celebrar a construção de novas narrativas.

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