Tecendo Amanhãs ou ‘a peleja pela busca de um título de uma crítica que diz menos do que o espetáculo que já diz pouco’ | Crítica de Estudo N°1 – Morte e Vida

por Vendo Teatro
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Foto: Vitor Pessoa/Divulgação

Por Luiz Diego Garcia
Recife, Março de 2022

Tecendo a Manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
João Cabral de Melo Neto

O cenário é: Mamãe nasceu numa cidade no interior da Paraíba que hoje tem cerca de quinze mil habitantes; há 52 anos talvez tivesse menos da metade, em meio de onze irmãos (todos começando com a letra E – menos minha tia Geralda, que vovô esqueceu o nome que vovó tinha mandado ele registrar no cartório, e foi Geralda mesmo;) Paulista fica no sertão, depois de Patos, há oito horas de Recife. 

O cenário é: Aos 16, mamãe se mudou pra João Pessoa, capital da Paraíba, pra morar com uma prima, pra conseguir um emprego, pra tentar a vida. Papai estava por lá, não sei se a passeio ou a trabalho. Eles começaram a namorar e logo vieram morar em Recife, onde papai residia. Casaram-se, mamãe engravidou de mim aos 20, e se separaram depois de 16 anos.

O cenário é: Mamãe trabalhou em shopping a vida toda, vendedora, lembro de crescer vendo mamãe trabalhando muitíssimo pra garantir o natal da gente, e sempre parecer cansada na noite do menino jesus. Mamãe teve minha irmã aos 39, e seguiu trabalhando como vendedora. Minha irmã agora mais crescida, mamãe decidiu ir morar longe, onde meu padrasto vive, ele é daqui de Recife e já tinha experiência numa grande capital da Europa como motoboy, ou cozinheiro, ou garçom; meios de ganhar a vida noutro canto, meios de tentar ganhar a vida num lugar onde a vida pareça mais ganhável.  

O cenário é: Mamãe, aos 52 anos, agora está morando a um oceano de distância. Severina que emigra.

Morte e Vida. Estudo Número 1.

Num processo de desvelar processos, o Grupo Magiluth, apresenta o seu estudo/espetáculo sobre a obra de João Cabral de Melo Neto. Morte e Vida Severina é um marco na literatura brasileira, um poema escrito com sangue-tinta, sobre tantos Severinos que saem de onde nasceram em busca de qualquer coisa que não seja a fome. Luiz Fernando Marques e Rodrigo Mercadante se juntam ao grupo numa parceria potente para investigar – antes de tudo o Estudo No 1 é uma investigação – direções, dramaturgias, concretudes, pedras, maçãs, cadeiras, pedras, cortinas, tristezas, angústias e, principalmente, migrações. Climáticas, políticas e avassaladoramente cíclicas, a investigação começa também na metateatralização do processo que se investiga a si; fazendo o que faz de melhor, o Magiluth propõe-se jogar. Jogar o jogo do teatro e nos contar das regras, estamos em uníssono participando desse pacto pela morte e vida. 

O Estudo começa diversas vezes, mas sempre já tendo começado. Como se o início do seu ciclo estivesse há muito anos atrás de si, o Estudo se mostra parte de si. Existe o espetáculo e o espetacular espetaculável. Como se investiga um teatro – uns teatros, o teatro, os teatros – através do mundo inteiro? Como pensar todos os moldes e desenlaces que o capitalismo massacra há tantos anos? Como abordar as infinitas possibilidades poéticas de conexões infinitas das potencialidades infinitas da obra migratória de João Cabral? 

O Estudo faz questão de mostrar que tenta, mas deixa claro que não consegue, que não se pretende conseguir (a repetição do trecho da obra mas isso ainda diz pouco é levada à uma constante consciência de que não há esgotamento nem possibilidade de restrição das temáticas abordadas, que aqui estamos presenciando uma chuva de ideias práticas e executáveis sobre a obra), e que a luta aplicada na tentativa de explorar inúmeros campos com sua arte, faz-se complexo e intrincado ao passo que muitíssimo simples na sua intencionalidade.

Num pot-pourri mise-en-scènico, a direção de Luiz Fernando Marques encontra um caminho de caminhos, tudo é plural e polifônico, e polissêmico, e poliglota, e polêmico. O trabalho que sai do palco, e invade um pedaço curto da plateia está sempre em busca de si. Um autor que escreve sobre sua busca de palavras, um artista que pinta misturando cores à procura daquela cor, mas que ambos já estão criando ao passo que tentam (e conseguem) criar. O Magiluth não teme o processo, nem o jogo, nunca o temeu. Talvez esse seja o trabalho de complexidade de jogo que mais se encaixe subsequentemente à primorosa montagem de Apenas o Fim do Mundo (O brusco MA do Magiluth | Crítica de “Apenas o Fim do Mundo” – Vendo Teatro), a verborragia aqui presente em sua repetição insiste em nos fazer ouvir a Palavra, mais uma vez. Como no texto de Jean-Luc Lagarce, aqui no Estudo No 1, também somos empurrados e espremidos pela Palavra. No entanto, em suas poucas, e diga-se de passagem ilustres, menções e autorreferências, o Magiluth sabe o teatro que quer fazer, entende onde está o núcleo da sua potência teatral, e faz uso de metateatro de maneira jocosa, ímpar e ativa: quando propõe estudar migrações, também o faz com identidades de seus membros.

Bruno Parmera, mais inteiro do que nunca. Não só o ator se mostra em completude da sua cena, mas também há um rapport especial em seus momentos solo; no momento de investigação do seu estudo de si, Parmera estabelece uma cena deveras simples: uma pesquisa numa ferramenta de busca de imagens com mais de 15 bilhões de imagens na internet. Ele tenta identificar-se no mundo, por aproximação visual. Digita homem, e os homens que aparecem não lhe parecem. Digita homem brasileiro, e o que brota também não lhe parece. Quando chega em homem brasileiro nordestino a cena catapulta-se e explode: Parmera vibra ironia, desprezo, pedra, cadeira, maçã, decepção, gibão, facão, pistola, e adereços. Tudo aquilo que aquelas imagens trazem e carregam de um dos nordestes chapados e infrutíferos advindas principalmente de uma visão xenofóbica sudestina da existência heterogênea da nossa região, fazendo com que a investigação de Parmera em cena se torne cada vez mais reveladora do Brasil, mesmo sendo, a priori, uma investigação de si. Então os adjetivos começam a crescer em número, quando se aproxima de homem brasileiro nordestino pernambucano magro e gay a cena implode aqui: gibão rosa, a resistência do Cangagay; mas isso ainda diz pouco. Quem é Parmera? Ele se encontra nesse medley antropofágico de bilhões de imagens, e também ele não está ali. A cena amarra-se por fim numa referência muito específica: uma projeção de um vídeo de um lavrador de cana dançando Billie Jean do Michael Jackson, Parmera dança junto, e como dança. E a cena volta a escangalhar-se, e aqui me permito subtrair um pequeno trecho, o spoiler da visualidade dessa cena poderia vir a estragar a experiência; mas deixo claro que a imagem gravada no fundo dos olhos, é difícil de explicar, mas de uma riqueza inigualável.

Após acompanharmos as diversas tentativas de início desse estudioso Estudo, fomos bombardeados por podcasts, músicas, cenas inteiras, luzes, projeções, microfones, informações, teorias. E Erivaldo Oliveira põe-se a investigar (junto com a forte referência de Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar que permeia todo o espetáculo) estar na pele de um homem de trinta e poucos anos que trabalha como entregador de lanches para um aplicativo de celular. Talvez o trecho mais angustiante do espetáculo, onde somos atropelados pela Palavra (com dados sobre valores de terras e quilometragens percorríveis, com a impossibilidade daquele homem, em vida, conseguir um metro quadrado de terra pra chamar de seu, mesmo sabendo que “O primeiro homem que inventou de cercar uma parcela de terra e dizer “isto é meu”, […] , foi o autêntico fundador da sociedade civil. De quantos crimes, guerras, assassínios, desgraças e horrores teria livrado a humanidade se aquele, arrancando as cercas, tivesse gritado: Não, você é um impostor.” Jean-Jacques Rousseau ), onde o palco vira uma corrida sem pódio em busca de sobrevivência, onde a morte choca para logo em seguida se tornar banal e corriqueira.

No seu ato final, Deus Ex-Magiluth.

Plateia dividida em direita e esquerda, presenciamos a mais longa cena do Estudo. Um debate, que se propõe metadramatúrgico e brilhantemente escrito, leva à cena dois pólos à tentativa de um acordo pela humanidade, pela salvação do planeta. Como salvar o planeta de seu capitalismo desenfreado? Como remediar o avanço galopante da extinção da raça humana? Não parece haver acordo dentro dos moldes conhecidos do lucro. 

Magiluth Ex-Machina.

Um astronauta pernambucano entra em cena. Lucas Torres se faz Poesia. Arte. Forma subjetiva de ressignificar possibilidades não vistas pela razão. No final apoteótico, escutamos apopléticos as palavras de João Cabral de Melo Neto gravadas à repetição exaustiva, as referências Severinas caminham pelas cabeças das pessoas todas presentes, o elenco observa, e o Astronauta Pernambucano Ex-Machina Deus Magiluth se vai. 

O cenário é: um crítico tentando terminar de escrever uma crítica que lhe parece tão infindável quanto as possiblidades de significados da obra Estudo Número 1 – Morte e Vida. A sensação de que mas isso ainda diz pouco paira no ar. Ele lembra da sua mamãe, sem muito mais o que dizer, além da saudade. Torcendo pela vida dessa caminhada Severina da humanidade, ele se despede com suor no rosto.

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