Ludicidades Melódicas do Porvir | Crítica de Jeremias e as Caraminholas

por Vendo Teatro
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Foto: Priscila Liberal

Por Luiz Diego Garcia
Recife, Setembro de 2021

“A saudade é o que faz as coisas pararem no tempo.”, diz Mário Quintana.

Alexsandro Souto Maior, escritor pernambucano, eternizou suas saudades há dez anos atrás, em uma homenagem ao seu avô José Maria, na dramaturgia para infância e juventude Jeremias e as Caraminholas que conta a história de um certo Jeremias, adulto e criança, e sua relação com o Tempo, família e com a arte da escrita de memórias. A montagem encenada por Rodrigo Hermínio, do grupo Teatro do Amanhã, acerta em cheio o tom acalante do texto num trabalho delicado, gentil e reflexivo.

Jeremias Adulto, vivido pelo firme e doce Anderson Macário, nos apresenta sua história e sua relação com suas memórias, conta sobre seu avô relojoeiro e sobre seu amor pela escrita num palco com pouca indumentária. Então, somos levados por um sopro de tempo, chegando a esse passado-presente de Jeremias Jovem e a história se desenrola nessas idas e vindas, sempre com adições bem humoradas dos comentários do Jeremias Adulto de Macário, que entra em cena como um comentarista de si, sabendo-se também repetitivo; mas a história é dele, e as palavras também. 

Vivendo Jeremias Jovem, Gabriel Cabral entrega um trabalho vibrante e crível em seus maneirismos e entonações, seu Jeremias é adorável, principalmente em contraste com sua mãe, aqui Sofia Kozmhinsky, que apesar de pouco flexível e endurecida pela realidade, tenta ser compreensiva com a relação lúdica entre seu filho e seu pai; mas é no enredo que envolve o seu Avô Relojoeiro que se encontra o cerne de Jeremias e as Caraminholas. Zé Lucas Bastos entrega uma performance precisa sem emular uma caricata velhice, a pouca idade do ator é escondida por uma maquiagem (assinada por Gabriela Oliveira, Sofia Kozmhinsky e Gabriel Cabral) bem definida, só que é no trabalho de corpo de Bastos que esse avô toma forma, um senhor relojoeiro altivo e impetuoso, também cheio de afetos em suas fragilidades. Mantendo-se em cena durante boa parte do espetáculo, Zé Lucas Bastos está sempre em movimento, como seus relógios. 

Entrementes, há no enredo de Jeremias… uma subtrama dispensável sobre um amor romântico por uma certa Colombina, interpretada por Luiza Rodrigues, que pouco adiciona ao balé de alegorias até então. Tal enredo, inclusive, trunca o trabalho por vezes; a paixão súbita não parece se justificar, e por mais gentil que seja o trabalho de Gabriel Cabral vivendo esse Jeremias Pierrô, resta em cena um ruído no curso da história, principalmente dentro da sua verossimilhança apresentada que se fazia terna e plausível em suas divagações riquíssimas sobre o Tempo.

Contando também com intervenções dramatúrgicas mítico-filosóficas das figuras alegóricas de Cronos e Kairós (deuses do Tempo na mitoliga grega), vividos respectivamente por Layon Figueiroa e Thiago Rodrigues (num trabalho de voz elaborado e distinto), Jeremias… ganha vigor ao não se submeter aos percalços de infantilizar a sua própria história; discute-se em cena as artimanhas do Tempo, abstrações compreensíveis e robustas, acessíveis ao público através da ludicidade com a qual a montagem as aborda. Os bonecos manipulados por Figueiroa e Rodrigues são imensos e também o aspecto visual mais encantador do espetáculo (confeccionados por Alcio Lins, Altino Francisco, Alex Apolônio e Wilson Aguiar). Eles trazem à montagem uma virtuosidade ímpar; como na passagem mais elegante da montagem, em que abraçam o Avô Relojoeiro serenamente, completando o ciclo do Tempo; deixando uma saudade.

Brilhando em cada nota e arrematando com sua delicadeza ímpar, a trilha sonora original composta por Rafael Victor não só adorna Jeremias… mas também se faz água doce nesse rio tão brando quanto complexo do Tempo. As músicas-tema são fundamentais para a compreensão das personagens apresentadas, como também sobressaem-se à atmosfera criada pela iluminação (concebida e executada por Karine Lima) trazendo um monumento arrojado com sua sonoridade. Trabalho exímio de criação e execução.

Ao final de Jeremias e as Caraminholas o sentimento de ternura e saudade prevalece, a vontade de estreitar laços e valorizar o presente se transmuta gentilmente no peito. O Teatro do Amanhã se faz atual e delicado.

A eternidade é o estado das coisas neste momento.
Clarice Lispector

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Robson Teles
2 anos atrás

Ainda não pude ver o espetáculo. Conheço o lindo texto.
Diego, sua análise crítica é tão poética quanto as imagens que Alexsandro Souto Maior sugere em várias cenas.
Parabéns ao autor, ao elenco, ao encenador e ao crítico teatral.

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