Foto: Morgana Narjara
Por Matheus Campos
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Abril de 2021
[…]
parada cidade estranha
choque elétrico todo dia
a dias meses anos
desintegrar – bang big –
numa implosão final
impotentes paras formatar
bilhões de bytes
trilhões de raios catódicos
em expressão inteligível
cidade: parada estranha
excesso exagero coisa fumaça
corpo crivado de bits
corpo crivado de bits
corpo crivado de bits
— Chacal; Cidade
O que mais chama atenção no trecho da poesia acima não é a sua estilística ou raízes em determinados movimentos, mas sim o seu conteúdo. O poeta Chacal, através de sua obra marginal, anuncia o aspecto do fragmentado no real pós-moderno e nos indivíduos em que nele vivem. Com isso, dentro desse olhar do fragmentado pós-moderno, é possível enxergar onde a obra Lacre Inviolável vai buscar suas inspirações e raízes.
A produção do coletivo Despudorados parece seguir um rumo que faz um pout pourri de ideias e filosofias as quais circundam a sociedade pós-moderna e vão de encontro e em encontro umas com as outras. A criação dramática do coletivo parece tentar arranhar as superfícies das complexidades morais e éticas da sociedade e em como fluem, de maneira completamente desordenada, as relações entre os indivíduos.
O título da própria obra já desperta o interesse, pois, conforme o dicionário, a palavra lacre significa “mistura de uma substância resinosa com matéria corante que serve para fechar e selar cartas, garrafas, etc.” e inviolável significa “que não se deve ou não se pode violar; sagrado. Intangível. Que não pode ser devassado.”, ou seja, lacre inviolável seria uma espécie de selo que, teoricamente, não poderia ser violado ou não deveria ser violado. Mas que lacre seria esse o qual a obra se refere?
Entre cenas inicialmente desconectadas, o objeto artístico — com direção e texto de Leonardo Alves — cria uma sucessão de caricaturas que refletem a fragmentação da sociedade e o caótico plural. Essas caricaturas estão divididas entre seis personagens e suas respectivas cenas. Dentre as personagens temos a Ilusionista, o Pessimista, a Realista, a Analista/Artista, o Moralista e o Espectador.
Para Platão, o conceito de beleza está pautado na noção de perfeição, de verdade, o que significa que, para ele, a beleza existe em si mesma, no mundo das ideias, separada do mundo concreto, no qual vivemos. Ou seja, alcançar o verdadeiro conceito de beleza e perfeição é literalmente impossível, mas é nessa caminhada impossível que encontramos a personagem Ilusionista (Thaísa Espindola), pois ela age como um reflexo de um mundo dependente do espelho, das câmeras, das lentes e dos clicks.
Ela é uma consequência do like, do tec, do pop, do universo que não poupa. Para a personagem, não basta apenas estar bem consigo, tem de estar perfeita para o mundo e para isso, há que ser bela, jovem, estar na moda e ser ativa. É um ser que não só tenta alcançar o não-concreto da perfeição com seus artifícios, mas que, acima de tudo, ilude a si mesma e tais características podem ser vistas através da intimidade entre personagem e câmera. O corpo em cena parece ser íntimo à câmera e aos meios midiáticos, de forma que os aparatos tecnológicos ao seu redor são quase extensões de seu corpo.
Em um contraponto a Ilusionista, há a personagem Pessimista (Leonardo Alves) que traz em si marcas de uma vida não tão feliz e bastante amargurada. A personagem parece beber de um niilismo nietzschiano, porém o que mais toca e marca a sua essência é a constante amargura por não encontrar o que de fato é a felicidade. Para alguns pensadores como Epicuro e Zenão, a felicidade é basicamente a ausência de dor e sofrimento, ela é o bem fluir da vida. Porém, para Schopenhauer, o fenômeno da felicidade é a ilusão cíclica entre a espera e o alcançar de determinado desejo, enquanto todo o resto é dor e sofrimento, por ter de recomeçar sempre o ciclo que é a felicidade.
E é nesse pensamento schopenhaueriano que se encontra o Pessimista, pois a personagem é um reflexo da infelicidade criada pela sociedade do consumo e líquida a qual vivemos. Esta personagem, por sua vez, parece funcionar devido aos contextos que estamos inseridos, todos estamos fartos de algo, assim como a personagem e o ator que lhe dá voz, mas o elemento da câmera parece maximizar as emoções e transpassa uma sensação leve de que aquilo ali é artificial.
Similar a personagem do Pessimista, encontramos a Realista (Brunna Martins) que remonta uma fala que qualquer pessoa já ouviu “Eu não sou pessimista, sou realista.”, porém sabemos bem que não há muita distinção entre os dois no hodierno. A Realista bebe também do niilismo e segue mais a fundo nessa vertente, de forma que dilacera a cadeia de relações interpessoais em uma comunidade, chegando à máxima negacionista da existência, para ela, a vida é sem sentido objetivo, propósito ou valor intrínseco, considerando as distopias descobertas e/ou exibidas em jornais, sites, blogs etc. A personagem é um reflexo do pulsante desejo pela ignorância, pois a consciência da realidade polarizada, vendida e hegemônica a perturba, não só por saber, mas por ver que outros poucos veem o que ela vê.
A realista toma os espaços exibidos pela câmera e não muito interessam as projeções que estão acontecendo simultaneamente ao monólogo, pois Bruna Martins explode em corpo e falas. A interpretação dialoga com o texto e o resultado é feliz em atrair os olhares e despertar emoções e reações diversas em quem vê, de maneira que a atriz se destaca entre os colegas.
Do outro lado da grande corda bamba que é a realidade exposta pelo simulacro dos Despudorados, está a Analista/Artista (César Pimentel) que parece ser um excelente decalque de uma parte da classe: os perdidos em um desejo de vanguarda, porém sem objetivos ou estéticas claras, um verdadeiro pandemônio pós-moderno sem sentido que alguns pseudo-metidos-a-alguma coisa dizem entender; e os engessados pelo bom e velho canônico aprovado pelas censuras, uma verdadeira máquina de dinheiro e produção acéfala de algo que não me atrevo a nomear. Resumidamente, a personagem é um reflexo dessas pessoas e suas criações na sociedade, de forma que gera questionamentos como: o que é arte? Onde vamos parar?
Essa personagem e sua cena funcionam como uma grande quebra de padrões estabelecidos pelas cenas anteriores e chama a atenção de quem, por ventura, estivesse desatento ao vídeo, pois ela evoca a necessidade do espectador de tentar entender o que está se passando ali. Curiosamente, a cena só toma forma e sentido no take seguinte, fazendo com que de fato se entenda quem é a personagem e seu propósito. Como qualquer arte e artista, só possuem seu sentido completo em um momento póstumo.
A quinta das personagens, o Moralista (Luiz Diego Garcia), particularmente, é a segunda mais interessante dentro da dramaturgia, pois ele serve tanto como um espelho para uma personalidade política abominável que viveu no passado, Hitler — ou para uma figura política genocida que está no poder nos dias de hoje —, quanto para uma pessoa anônima qualquer que comete os mais impensável dos atos. O Moralista é o reflexo da hegemonia de determinadas concepções morais enraizadas no seio da humanidade, a personagem age sob uma visão de utilitarismo corrompido, para ele não importam os meios, mas sim os fins que geram um bem estar comum. Porém, as perguntas referentes a essa forma de agir são: para quem o bem estar comum foi gerado? Quais as consequências dos meios tomados?
A personagem esquece que todo juízo de valor está pautado em uma negação de outros valores e ideais opostos aos seus e assim acaba massacrando muitos, na intenção de que haja o bem estar comum para aqueles que compartilham dos mesmos juízos e ideias. A persona do moralista é a verdadeira caricatura da corrupção na moral e ética
E por ser uma personagem tão complexa, ela demanda de elementos visuais e narrativos que a completem. Tais complementos para a personagem, felizmente, são trazidas pela narrativa lúdica de Luiz Diego, associada aos takes com bonecos o que foi uma proposta ousada e com grandes probabilidades de não ser bem vista por alguns, muito embora passe as mensagens de forma clara, objetiva e impactante.
Por fim, a sexta personagem, a mais interessante, não aparece na gravação e não tem falas, ela é uma entidade que paira durante toda narrativa da obra e só pode ser vista do lado de cá das telas. A sexta personagem é o Espectador (todos nós), um mix de cada uma das personagens na gravação e com muito mais que não foi mostrado. O Espectador é o que dá sentido à obra e de fato interliga as cenas, pois é ele quem reafirma a complexidade da realidade e confirma o propósito do simulacro em forma de vídeo.
O conjunto da obra inteiro parece refletir o fragmentário no mundo, pois além de suas complexas personagens, os figurinos (César Pimentel), maquiagens, design (Samuel Castor) e iluminação (Fernando Rybka e Leonardo Alves e cenários) transpassam uma identidade de pós-moderno, não por ser algo extremamente moderno ou complexo, mas por retratar, de maneira prática, a simples aleatoriedade da vida. Esses elementos simplesmente reafirmam aspectos presentes na narrativa e propositalmente despertam curiosidade, sentimento de ridículo ou confusão nos olhares de quem assiste.
Outro elemento que reafirma o aspecto da complexidade pós-moderna em Lacre Inviolável é o formato no qual ele se apresenta. Não poderia conceituar como teatro/teatralidade/espetáculo ou qualquer expressão a qual não escrevi nesse texto, pois, o objeto artístico não poderia ser inteiramente teatro. Todavia, ele também não cabe nos moldes do universo cinematográfico por inteiro. Lacre Inviolável possui claramente atores de teatro, porém não traz consigo o efêmero; é gravado, contudo não faz uso de recursos outros do cinema no momento da gravação; possui projeções (Flávio Ferreira) e elementos similares a um picture-in-picture, e brinca com o lúdico do espectador; é renderizado e editado, mas há uma base de princípios teatrais na formação do espetáculo e atuação.
Estamos diante de mais um híbrido dramático que o contexto da pandemia e pós-modernidade nos apresentou e que brinca com o imaginário através do recurso narrativo do teatro, mas depende de elementos técnicos da arte audiovisual gravada. Uma verdadeira incógnita estética e dramática que se comparada a outras obras lançadas, no mesmo período, ela se distancia de algumas e se aproxima de outras, o que faz pensar que dentro desse gênero híbrido — ainda sem nome — já existem subgêneros e categorias estéticas.
Dadas todas essas considerações, é possível responder que o tal lacre inviolável é a estrutura da sociedade que foi reduzida ao pó e refeita de forma plural, de maneira que o lacre rompido deixou suas marcas no objeto-mundo. Vive-se agora em um mundo fragmentado, pluri-conceitual e repleto de novos lacres que parecem ser invioláveis: o lacre do racismo, o lacre da pobreza, o lacre do consumismo, o lacre da dependência da aprovação externa… porém, parece ser uma questão de tempo para que esses lacres também sejam violados.