Cordel, Famílias Matriarcais e Negritude | Crítica do espetáculo “Cordel do Amor Sem Fim”

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Por Cleyton Nóbrega
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Março 2021

“Se com uma frase Deus criou o céu
é natural que com uma frase o céu desabe.” 
Trecho de Cordel do amor sem fim

Como entender o amor? O amor é capaz de nos tirar do eixo? E quando esse amor não é correspondido? Essas e outras questões vieram a mente quando tive a oportunidade de assistir ao vídeo-espetáculo do grupo O Poste Soluções Luminosas – Cordel do Amor Sem Fim, que fez parte da IV edição do “Festival Luz Negra – O negro em estado de representação”. Esse ano o festival  ocorre de maneira completamente digital entre os dias 18 e 28 de março. 

O evento busca o fortalecimento da representatividade dos artistas negros que fazem a cena teatral do estado de Pernambuco. Algo de suma importância no que tange o cenário político-social brasileiro na atualidade. Num país onde as diferenças sociais e políticas se delimita de acordo com gênero, o tom da pele das pessoas, festivais ou eventos que busquem o fortalecimento político, artístico e cultural do povo negro devem ser valorados e estimulados. A estética poética da literatura de cordel é utilizada como um cânone da narrativa. Uma alternativa de encenação acertada e atrativa.

A encenação foi a primeira montagem do grupo desde que se tornou um grupo de pesquisa, sendo agora revisitada para participar do festival. O enredo dialoga com diversos elementos inerentes à Literatura de Cordel, que é uma manifestação literária da cultura e da realidade do povo do nordeste, tendo grande relevância nos estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Pará e no Ceará. O cordel geralmente escrito em versos vai dialogar sobre a realidade do povo sertanejo, seus causos e contos, o que envolve muita superstição em conversa com a realidade. A encenação da história de amor de Tereza e Antônio é repleta de beleza e instrumentalidade, o figurino e a iluminação estão bastante afiados e dialogam de maneira prática com os elementos cênicos. Os atores em cena estão bastante à vontade.

No decorrer da encenação os atores cantam, dançam e utilizam de maneira prática os elementos que tem em cena. Foram escolhidas algumas peças chave dentro da montagem, como: mosquiteiros, pilão, tecidos e o uso de instrumentos musicais que ajudam o público a entrar na  atmosfera sertaneja e mítica do Nordeste e a se emocionar com os acontecimentos da peça.

A força de vida das três irmãs, Madalena, Carminha e Tereza em alguns momentos se contrapõem às loucuras e devaneios do apaixonado e bêbado José. A encenação demonstra a força feminina e o poder de suas decisões, escolhas, força e luta. As famílias matriarcais como a do espetáculo são extremamente comuns não só na realidade nordestina como também em todo o globo. O que nos explicita a quebra de certos padrões estipulados pela nossa sociedade no que tange a configuração do que seria posto\imposto como uma família ideal, composta por  pai, mãe e filhos. Por exemplo, em Pernambuco na cidade de Salgueiro, encontramos a comunidade quilombola de Conceição das Crioulas. Os antigos dizem que o quilombo em meados do séc XVIII foi fundado por seis negras e do passado até hoje é regido por uma estrutura familiar matriarcal. Na comunidade o trabalho artesanal é tido como uma herança histórica, de tradição feminina relacionada à resistência e luta.

Tereza fica às margens do rio São Francisco esperando o seu amor que nunca chega e acompanhamos todo o seu martírio.  Me senti embarcando num universo distante da minha realidade, mas ao mesmo tempo tão próximo a mim, tão familiar. E foi difícil ao fim da encenação segurar as lágrimas. Logo após o espetáculo, algumas pessoas do elenco e do grupo O Poste, continuaram a construção de diálogo com o público, por meio de uma mediação online. Descobrimos diversas curiosidades relacionadas às ideias e inspirações para o Cordel do Amor Sem Fim

Cordel do Amor Sem Fim desperta sentimentos, lembranças, curiosidade, vontade de ver e rever. O espetáculo levanta inúmeras questões relacionadas ao poder e a força feminina, enaltece a poesia do cordel e dialoga com referências da estética afro de maneira singular. Assista, não perca a chance.

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