Cineteatro e a Poesia das Imagens | Crítica do espetáculo Avós

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Por Ananda Neres
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Março de 2021

No nosso falar, gambiarra remete à extensão de fios elétricos para furto de energia ou algo feito de improviso, mal feito. Longe dessas definições, surge durante a pandemia global da COVID-19 o Cineteatro Gambiarra, grupo que explora as possibilidades e imbricações entre as linguagens do teatro e do cinema. A gambiarra aqui talvez se dê na imposição pandêmica pela busca das virtualidades. 

A sala do Zoom é aberta às 19h50min. Em cena, um minigalpão com pilastras. Sob as luzes amareladas: um voal ao fundo, um curto caminho de pedras, uma mesa e sua cadeira na lateral. No centro, a atriz se aquece. Passado pouco tempo, ouvimos uma voz que carrega em si os tremores e a calma da experiência. A voz fala sobre sua vida, suas experiências num tempo anterior a este, nas relações que mudam com o tempo, na linha nem sempre exata que separa as figuras filha-mãe-avó. A voz calma interage com outra, rápida e vivaz, marcas da juventude que tem pressa. A segunda investiga e provoca o dizer da primeira. Durante o diálogo, entendemos que esta segunda voz é de Olga Ferrário,  atriz-personagem que se aquece diante de nossos olhos, enquanto a primeira de sua avó. Como previamente estabelecido, ao som do terceiro sinal, Avós inicia-se pontualmente às 20h05. 

“Isto não é uma história”, nos avisa Olga desde o princípio. O espetáculo é conduzido pelos relatos de suas avós – materna e paterna – que não necessariamente possuem relações entre si. São recortes de vida. Somos convidados a fazer um mergulho dentro. As experiências das predecessoras corporificam-se na intérprete, que com leveza e poesia costura o tempo que foi e que é. Realidade e ficção. O trabalho corporal consciente da atriz e seu olhar destemido para nós espectadores são marcantes na experiência.

Para além da atriz, a câmera-personagem da cineasta Dea Ferraz é fundamental para a construção da não-história. Com enquadramentos e planos da linguagem cinematográfica, as lentes ora guiam o olhar do espectador, ora assumem seu lugar, colocando-se como cúmplice das confidências e dos olhares de Olga. Apesar da estética, é válido ressaltar que o espetáculo não é previamente gravado, não possui cortes ou edições de cena. É ao vivo. É teatro. Ou melhor, cineteatro. Por essa razão, a construção e a dança das imagens sobressaem aos olhos. Mas não é esta a única interseção com a linguagem fílmica, algumas cenas são projetadas durante a apresentação, tanto na tela da plataforma suporte (Zoom Meetings), como na tela-voal ao fundo da cena, a imagem sobrepõe-se ao corpo da atriz. Em todos os casos, projetadas na tela do meu notebook.

Outro elemento que se sobressai durante a apresentação é a trilha sonora conduzida por Hugo Coutinho. A sonoridade em momentos fragmentária e metálica, aumenta a estranheza, da aflição de lançar-se ao desconhecido, já em outros, é quase como um acalanto. Colo de vó. Não resumindo-se aos aspectos comentados, a sonoplastia amplia a sensorialidade da experiência e faz sentir-se em sua ausência. Suspende a respiração. 

Ainda destaco a presença das águas, que ora fluem, ora jorram, ora embalam. Água-fertilidade. Límpidas ou encarnadas. Água do ciclo feminino que se repete através das gerações. Água-parto do nascimento tríplice. Afinal, assim que nasce a criança, também nascem a mãe e a avó. 

Com muita sensibilidade, o monólogo nos transporta por dores e perdas, por pedras que aprisionam e calam, mas que constroem os caminhos que hoje percorremos. Da luta que hoje ainda se instala: não tem a pessoa idosa desejos próprios? Não pode a pessoa idosa decidir por si? 

A simbiose de linguagens elaboradas pelo Cineteatro Gambiarra encanta. A criação  pensada para o formato digital de Olga Ferrário com co-criação de Dea Ferraz, Lívia Falcão e Sílvia Góes faz reverência aos que vieram antes e a suas sabedorias. Apesar de dedicado aos avôs e avós, o espetáculo destaca a figura feminina. Avós são mulheres históricas. Quem quer ouvir o que elas têm a dizer?  

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