Sociedade Líquida | Crítica do espetáculo Ópera D’água

por Vendo Teatro
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Foto: Thiago Farias Neves

Por Paulo Ricardo Mendes
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Janeiro de 2021

 “Só quem carrega o próprio balde, sabe o valor que cada gota d’água tem”
Autor desconhecido

Depois de quase 1 ano sem pisar em um teatro por causa da pandemia, pude retornar ao Teatro do Parque, que foi reinaugurado após mais de 10 anos de fechado, para assistir presencialmente à peça Ópera D’Água, da Reduto CenaLAB, que faz parte da programação do Janeiro de Grandes Espetáculos 2021 (JGE). Preciso registrar que esse reencontro com o lugar por si só foi precioso, pelas circunstâncias atuais, como também por vê-lo novamente habitado e restaurado. O espetáculo, por conseguinte, tornou esse momento ainda mais potente, pelo que foi abordado em um pouco mais de uma hora de apresentação.  

Logo na chegada somos convidados a pegar um copo d’água e a derramá-la em um dos baldes que se encontram distribuídos pelo corredor, de modo a formar um caminho com direção aos assentos e o local que vai acontecer a trama. A encenação, que conta com a concepção e criação coletiva do Grupo Proscênio, com direção de André Chaves, aconteceu na área externa, na parte do gramado; importante ressaltar que as cadeiras estavam distantes uma das outras, seguindo a recomendação da Organização Mundial da Saúde, entretanto, a sua distribuição de imediato foi um ponto que provocou um certo incômodo, pois dependendo do ângulo que você estivesse sentado o desfrute do espetáculo seria limitado. 

Enquanto os espectadores se acomodavam, tocava na rádio improvisada pelos integrantes – até de nome sugestivo, “Encanada”, canções para entreter o público. Ao terceiro sinal, as luzes se apagaram e minutos depois, o único barulho que se ouvia é o da água escorrendo pelos pratos, conforme os integrantes iam movimentando o líquido cautelosamente, como se ele estivesse dançando no compasso do objeto prateado, enquanto a lâmpada de led se encarregava de iluminar todo percurso. 

No espetáculo, por sinal, a iluminação cênica ficou restringida às lâmpadas de led que rodeiam o palco improvisado; já os figurinos de Paulo Ricardo e os objetos cênicos (baldes, bacias, garrafas, canos etc) chamam atenção, porque são produzidos criativamente a partir de materiais reaproveitados, como o vestido de plástico e o cano de PVC, feito de instrumento em um dado momento, mostrando assim, a escolha do grupo por um viés sustentável, que torna o resultado final bem mais autêntico. A parte musical, com orientação de Sônia Guimarães, em determinados trechos da montagem, ganha reforço e potência com a guitarrada ao vivo tocada por um dos integrantes. A versatilidade e entrosamento dos seis atores é vista nos diferentes papéis que eles assumem ao longo da trama.  

A substância aquosa é bem explorada na montagem, uma vez que a história retrata a dura realidade de “Aqui”, uma cidadezinha, a princípio fictícia, cuja moeda de compra é a água e não o dinheiro. No entanto, o individualismo e o consumo, fruto do capitalismo e de uma sociedade líquida, descrita pelo sociólogo Bauman, vai aparecendo fortemente no decorrer das cenas nas quais é possível perceber uma relação volátil e frágil no meio de produção, social e econômico, cujas riquezas acabam se concentrando nas mãos de poucos, que por ventura, os detentores de poder, ameaçam e exploram os que dependem dos recursos hídrico para sobreviver. Logo, essa saga pela justiça e acesso igualitário à água, assim como os percalços provocados pela ausência dela na vida da população local, propõe um mergulho em temáticas sócio-econômica-ambientais.

Não faz muito tempo desde que a barragem de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) romperam matando centenas de pessoas e deixando outras desalojadas. Em Pernambuco, um dos principais reservatórios para abastecimento do Agreste, Jucazinho, situado no município de Surubim, já foi notificado por apresentar alguns problemas técnicos, correspondendo um risco eminente de mais uma tragédia ambiental; caso isso aconteça, não há planos de ação de emergência por parte do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs).

É certo que para além das causas naturais, a problemática desses desastres respinga na corrupção dos agentes públicos, na falta de legislação, tecnologia adequada e de planejamento dessas empresas que na maioria das vezes visa apenas o interesse próprio. Foi justamente o que aconteceu com os reservatórios mineiros de Mariana e Brumadinho, ambos pertenciam a Vale, uma mineradora multinacional brasileira, que construiu as duas barragens apostando num método mais simples, barato e, consequentemente, mais perigoso, não levando em conta a segurança dos moradores da região. 

Semanas atrás, a Compesa decretou o racionamento na Região Metropolitana do Recife, devido ao nível crítico das barragens. Diante desse fato, 100 localidades foram afetadas com o aperto nas torneiras, sendo a periferia a mais prejudicada; em alguns lugares de Jaboatão, as pessoas ficaram 20 dias sem receber uma gota sequer. Em meio a esse cenário turvo, o grande agravante disso tudo desemboca no monopólio da água, como bem é abordado na peça; na qual apesar de estar presente na constituição brasileira que este bem pertence a todos os brasileiros, são as empresas ganhadoras da concessão que vão captar os recursos, determinar o valor e escolher as pessoas beneficiadas. 

Neste quesito, a encenação é valiosa quando aborda toda essas questões de forma bem colocada, mesclando o gênero do humor com o drama, e colocando o dedo na ferida em determinados momentos, pois são levados à cena, por meio das interpretações, o cruel reflexo dessa privatização e do poder destrutivo das indústrias e empresas. Pode ser visto desde à disputa ferrenha por uma garrafa d’água pela população de “Aqui” – cujo contexto poderia ser comparado com a situação da cidade natal dos integrantes, Surubim, até retratar a soberba dos poderosos ostentando e desperdiçando a água do chuveiro, enquanto os funcionários são obrigados a mascarar a precária situação. 

Essa enchente de problemas relacionado à água e à falta dela, também atravessa o grupo enquanto cidadãos que (sobre)vivem da arte, pois assim como os moradores da cidadezinha fictícia, é preciso lutar diariamente por um gole de incentivo, valorização e reconhecimento, ainda mais em tempos de desgoverno e de pandemia. A sede por mudança é grande, mas a estrada é longa e seca. Talvez por isso, seja necessário primeiro irrigar o solo com discussões saudáveis, trocar experiências frutíferas – para só assim resistir e reagir a esse caminho repleto de intempéries. 

E foi algo parecido com isso que aconteceu em um determinado momento da peça, quando um dos integrantes interrompeu a cena, de modo a cortar todo clímax que vinha sendo construído desde então, provocando até um certo estranhamento, pela forma rápida e direta como foi feita essa disruptura. Em seguida, o ator traz algumas reflexões sobre o cenário social e político atual – que de modo geral, acaba sendo os mesmos questionamentos abordados pela trama, usando do microfone para justificar a pausa e provocar novas ponderações do público sobre a temática, quebrando assim a quarta parede.

Após um breve silêncio da plateia, que pelo visto ainda estava entendendo a dinâmica deste intervalo, duas pessoas se pronunciaram, trazendo contribuições bem pertinentes para a ocasião. A primeira aproveitou para relatar seu descontentamento com o governo diante das inúmeras atrocidades ditas e cometidas, convidando o público à lutar pelos seus direitos e a segunda, reforçou o discurso anterior, recitando, para resumir tudo isso, um poema do célebre Ariano Suassuna. 

Nesse sentido, reitero a necessidade de desenvolvermos um olhar mais inquietante e ativo nas causas ambientais, sociais e políticas, pois tudo isso nos atinge, independente de estarmos em Mariana, Jucazinho ou no Recife. E para que não tenhamos novos desmoronamentos e perdas, é preciso que cada um faça a sua parte, afinal, no frigir dos ovos, somos todos um só. Até porque, nessa sociedade líquida, não podemos nos reduzir apenas a números e objetos, nem podemos ser apenas conexão, precisamos, para além disso, estabelecer pontes e relacionamentos. 

Além dessas observações, me pego analisando também a trajetória do Proscênio até chegar ao Teatro do Parque, pelo fato de estar localizado no centro da capital pernambucana e o grupo ser natural do agreste do Estado; uma vez que, como bem colocou um dos integrantes nos agradecimentos finais da peça, ainda existe uma barreira muito grande entre os artistas do interior e as companhias recifenses, tanto no quesito diálogo quanto de oportunidades. Logo, a presença física do grupo em tempos de pandemia, reforça sua qualidade, força e potência, sem esquecer de reconhecer a importância do festival.

Assim como a oportunidade que grupo teve de trazer Ópera D’Água para o JGE, que outros tenham essa mesma chance de realizar esse intercâmbio artístico, seja em festivais, teatros etc, porque no final das contas, sabemos que essa partilha é tão rica e engrandecedora, tanto para as companhias como também para quem assiste. Da mesma forma, estendo meu desejo que essa pandemia acabe logo, a fim de termos mais encontros presenciais, para conhecermos mais trabalhos de outras regiões, bem como, prestigiarmos os nossos ao vivo. Até lá, enquanto esse fluxo vai acontecendo lentamente, vamos assistindo às montagens online, prestigiando-as, quando possível, nos espaços culturais, mas sem esquecer de usar máscara, passar álcool em gel nas mãos e, claro, beber água. 

E que ao final de tudo isso, a arte e todos nós sejamos livres como o rio. 

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