Foto: Divulgação
Por Cleyton Nóbrega
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Janeiro de 2021
“Desperto um belo dia no mundo e me atribuo um único direito: exigir do outro um comportamento humano. Um único dever: o de nunca, através de minhas opções, renegar minha liberdade.”
Frantz Fanon
O espetáculo é repleto de cor, instrumentalidade, luz e vida. A obra distópica permeia três períodos, 1950, 2019 e 2888 e se vale das teorias do psiquiatra e filósofo francês Frantz Omar Fanon (1925-1961). A montagem escancara as mazelas psíquicas e sociais pelas quais passaram e passam as pessoas negras reféns do sistema e das práticas coloniais característicos às relações raciais no ocidente. Fanon, inclusive, escreveu seu primeiro livro: Pele Negra, Máscaras Brancas em 1952, livro este que dá nome a encenação. O autor é pioneiro em problematizar questões relacionadas à vivência dos negros no ocidente. Questões que envolvem o racismo, alienação e emancipação dos negros na conjuntura da colonialidade, fazem parte de seus escritos. Fanon problematiza no livro em questão as consequências do racismo nas práticas político-sociais dos seres humanos na conjuntura característica da dominação sistêmica implementada no ocidente pelo branco ao negro. Dialoga sobre a construção de identidades negras e sua emancipação cultural na quebra de estereótipos.
A obra problematiza visões esteriotipadas sobre o negro, construídas pelos brancos opressores, reverberando no mundo ocidental do séc. XVI em diante e que envolvem e classificam o negro em nichos preconceituosos e reducionistas. O racismo não leva em conta a importância da influência do povo africano nos processos formativos das sociedades ocidentais. Não é preciso ir muito longe para observar dinâmicas racistas: se abrirmos muitos dos livros didácticos disponíveis, ou se formos a museus que tocam na temática etnico-racial, por exemplo, veremos que a influência negra nos processos formativos e constitutivos do ocidente, são implementadas pelo esteriótipo, pela exotificação e sexualização do povo negro. A cultura hegemônica classifica o negro num lugar menor, a cultura negra como menor, essa é a versão dos brancos sobre os fatos históricos que perpassam às gerações.
Fanon problematiza o enfrentamento dos esteriótipos e afirma que os negros vão além dessas classificações racialistas. Ele classificou os negros enquanto sujeitos racionais e capazes de ser o que quizerem e sobre a importância do negro em reescrever as suas histórias, levando em consideração a destituição que os africanos vítimas do sistema escravista sofreram. A perversidade sistêmica que faz parte da colonialidade privou os negros de sua cultura, seu povo, sua terra e mesmo assim, eles resistem por meio das ciências, artes, na música, cultura, força e vida.
A peça Pele Negra, Máscaras Brancas, resolveu utilizar-se de uma estética brechtiana na montagem. Os atores entram e saem de cena em diversos momentos; existe também a utilização do blackout no decorrer do espetáculo, aliado a troca de figurinos das personagens em cena. A estética afrofuturista do espetáculo não se perde durante a encenação, os atores são vibrantes, se olham, performam e atuam de acordo com a organicidade decorrente das cenas. No início somos marcados pela maneira como os atores em cena cantam e repetem afirmações presentes no livro de Fanon: o que quer a mulher preta? O que quer o homem preto? Os atores têm uma boa projeção vocal, entretanto é preciso que o grupo fique mais atento ao fôlego para conseguirem dizer o texto de uma melhor forma, mais audível. Esse momento inicial durou muito tempo também, o que torna a experiência de apreciação no início da montagem cansativa*. A metalinguagem segue durante todo o espetáculo, os atores em cena dançam, cantam, atuam, estão presentes e tem ótimo tônus muscular.
Na montagem o grupo critica a burguesia-branca e seu atraso que beira a alienação, mas não seria essa uma alienação causal? Ser branco é gozar de privilégios, se você caro leitor, é branco e nunca se questionou quanto a estes privilégios, reflita sobre sua passabilidade no mundo e o que o fato de ser branco te ajuda ou te atrapalha. Talvez, assim, seja possível que trabalhe no seu íntimo a empatia para com o negro e suas causas.
Vale frisar que o espetáculo perpassa três períodos supracitados, o mundo encontra-se sobre o controle do “Regimento único”, onde não existem mais países e todo o mundo é dominado por este regime que eliminou a história negra da história da humanidade e privou das pessoas do acesso ao conhecimento por meio de bibliotecas dentre outros meios. Tal realidade funciona como um tipo de virtualidade/dimensão, análoga à nossa sociedade contemporânea em diálogo com os preceitos defendidos por Fanon sobre questões étnico-raciais no séc. XX. Em alguns momentos a divisão temporal do espetáculo fica meio confusa para quem assiste, talvez o grupo pudesse definir de forma mais precisa as divisões temporais de cada época para as personagens por meio de acessórios, por exemplo, roupas, colares, penteados ou até mudando a dinâmica da iluminação de forma mais proveitosa no decorrer da montagem.
Por último, e não menos importante, o espetáculo dinamisa as identidades itinerantes do povo negro e a luta ferrenha que nós pretas e pretos encabeçamos na contemporaneidade. Espetáculos como Pele Negra, Máscaras Brancas, são necessários e podem viabilizar ao público novas perspectivas sobre a vida. Torço por mais espetáculos assim e que grupos como a Cia de Teatro da UFBA (Salvador) se espalhem e ecoem no mundo.
Eu assisti a essa peça (texto adaptado por Aldri Anunciação), É um espetáculo belíssimo e impactante.