Foto: Divulgação
Por Luiz Diego Garcia
Recife, Janeiro de 2021
Há uma crise no brasil desde o ano 1500 depois de um cristo. O brasil não é brasileiro. O brasil é português e europeu, aqui e ali o brasil é Indígena, é Preto, é Nordestino, é Nortista. O brasil é roubado e rouba de si. O jogo que jogamos aqui não parece ter chances de ser ganho.
Jogo do Bicho se inicia com regras de um jogo que nem sequer se propõe a jogar na prática, muito menos a cumprir as regras postas. Com encenação enxuta e sonoplastia potente de Gleidstone Melo, o espetáculo do Grupo Garagem transita entre a crítica social e o lúdico jogo de tabuleiro. Integrando a grade do 27º Janeiro de Grandes Espetáculos (JGE), o grupo Amazonense marca presença e ganha contornos grandiloquentes ao se propor jogar um jogo cênico que está fadado ao fim trágico, principalmente tendo em vista a contemporaneidade no qual os pilares do aqui-e-agora se instalam. O elenco traz na pele contornos de uma beleza plural: em cena os jogatores e jogatrizes Andreza Afro Amazonica, Diego Bauer e Lu Maya transitam entre personagens pré-estabelecidos pela dramaturgia, mas que contam com uma emulação aleatória do telão atrás deles; telão este que, no vídeo-teatro que fora disponibilizado para o JGE, se expande e toma a tela, aproximando o vídeo do formato teatral proposto. Válido ressalto encontra-se no acertado tradutor de libras Carlos diOliveira que parece estar em uma sincronia ímpar com a matriz de interpretação do espetáculo.
Em uma captura de multi-câmeras, somos presenteados com um vídeo mais cuidadoso que a média, temos mais de um ponto de vista, temos um elenco munido de microfones, e podemos passear pelo palco junto ao corte de edição dado a obra. Corte seco e opaco por vezes, sim, infelizmente o brilho do suor e o cheiro da sujeira humana ainda não são capazes de atravessar o modelo cênico virtual; em breve, talvez. Contudo, o conteúdo é elaborado para que haja uma recepção o mais clara possível, e é trunfo no meio de materiais mais rudimentares que apareceram no festival até agora.
No palco distante há um tabuleiro com números no chão, uma caixa-palanque no centro. Imagens de tortura, omissão política, usurpação, assassinato e crimes contra o país – aqui simbolizados metonimicamente por Manaus – invadem e incomodam ao longo dos curtos, mas precisos, trinta minutos da projeção cênica. O jogo tem suas alegorias do próprio jogo, e entrementes faz questão de alegorizar figuras de poder militar, político e religioso; através de sua construção de figuras clássicas opressoras, em sua maioria, o elenco alcança um resultado proveitoso e agradável ao longo do processo. Ressalto aqui a diminuta, mas pontentérrima, cena em que Diego Bauer pronuncia-se mandatário da nação, com distância e nojo o ator é capaz dos maneirismos mais conhecidos, e não menos eficazes, da tal figura que ocupa o cargo no país. Um show de horrores que conhecemos tão amargamente bem.
Politicamente acertado, ao passo que esteticamente engessado, Jogo do Bicho leva à cena a constante rítmica da dualidade opressor x oprimido de forma conhecida, mas não menos elucidativa.
O jogo é político, mas o bicho é humano.
Apesar de ocupar o espaço quase que como um uma entidade mítico-narrativa, o bicho do jogo não está em cena. Mencionado à exaustão, mas nunca visto, o bicho é sempre uma alegoria ao oprimido, ao que sofre amarguras indescritíveis; o bicho é gente, o bicho tem cor, e não é branca. O bicho do Jogo do Bicho nunca teve chance de ganhar o jogo, porque o bicho do Grupo Garagem, nem pôde jogar.