Viver para trabalhar ou trabalhar para viver?| Crítica da espetáculo “Caipora Quer Dormir”

por Vendo Teatro
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Foto: Divulgação

Por Paulo Ricardo Mendes
Revisão Crítica: Luiz Diego Garcia
Recife, Janeiro de 2021

Uma das vantagens das peças teatrais gravadas, sem dúvidas, é a possibilidade de conhecer e assistir trabalhos produzidos e encenados em diversas regiões do Brasil. E os festivais, que resistem em meio à pandemia, são uma boa oportunidade para viajar por esses palcos através de uma tela. Foi assim com Caipora Quer Dormir – Um espetáculo infantil para adultos, que integra a programação on-line do Janeiro de Grandes Espetáculos (JGE) 2021, após temporada em Brasília e apresentações em Escolas Públicas. A montagem pôde ser vista na primeira semana do festival através da plataforma do YouTube. 

A peça brasiliense, que tem criação, cenografia, figurino e direção de Jonathan Andrade, aborda a rotina frenética, assim como a exaustão, provocada pelo excesso de obrigações na vida da personagem Caipora – interpretada pela atriz Giselle Rodrigues; uma mulher moderna, que divide seu tempo entre o trabalho como professora e as atividades domésticas. A história se desenvolve de forma não-linear com muita leveza e pitadas de humor, sobretudo pela interpretação divertida de Giselle, que ora parece seguir o script ora parece passear pelo improviso. 

Apesar do pouco uso da oralidade, uma vez que a trama é predominada pela linguagem não verbal, a narrativa consegue comunicar bem a intenção da personagem, através das expressões corporais da atriz. Nota-se, inclusive, referências de cartum, desenho humorístico, a partir do modo que as tarefas são executadas, como a objetividade nos movimentos, o viés humorístico e crítico implícito nos códigos enunciados pela personagem. Até também pela própria temática do espetáculo, que trata questões pertinentes à realidade e à cenografia do apartamento, nas cores predominantes de verde e rosa, que mais parece a casa da Barbie dos anos 90 e vai nos revelando a versatilidade dos cômodos.  

Um elemento cênico que faz jus ao nome Caipora é o cigarro, pois a personagem o utiliza em diversos momentos ao longo de um pouco mais de uma hora de exibição. Lentamente é possível ir fazendo uma aproximação da personagem com a criatura folclórica de nome homônimo. Isso porque, de acordo com as lendas, ela é conhecida por fumar bastante, no qual algumas histórias relatam até que alguns caçadores que fizessem uma oferta de fumo eram perdoados pela entidade, que tinha a função de proteger a mata e os animais, dos transgressores da natureza. Os cabelos avermelhados da personagem da peça também nos permite uma associação com a figura mitológica. 

Gradualmente a montagem vai apresentando o universo da personagem, que vive nesse looping eterno de afazeres, numa verdadeira selva, só que de pedras, no qual, a floresta que vive o ser encantado místico, dá lugar a um apartamento minúsculo e a figura desse habitat apesar de não ter orelhas pontudas, garras e nem presas, tem pressa e se alimenta da rotina cheia de atribuições. 

Nesse sentido, na peça, o tempo parece não ser o aliado de Caipora nessa múltipla jornada, pois entre tantas coisas a serem feitas, não consegue arrumar um momento para descansar. Para completar, em algumas situações, existe a intervenção de um narrador que dialoga com a personagem, contribuindo para a sua exaustão e sobrecarga de funções, pois dá ordens para realizar determinadas tarefas e pressiona para finalizar o serviço logo. Em um dado período me questiono: seria apenas vozes da própria cabeça e do interior?

Nesta pandemia, um dos grandes desafios dos grupos teatrais tem sido realizar os espetáculos virtuais com a mesma qualidade do presencial, uma vez que muitas companhias não tinham o hábito de produzir conteúdos em audiovisual. Entretanto, alguns trabalhos filmados, na tentativa de imprimir essa sensação “tête-à-tête” acabam falhando na missão, pois às vezes falta qualidade técnica para produzir o conteúdo e isso reflete na experiência final.

Em Caipora quer Dormir a exibição passou por alguns problemas de gravação, na qual, em alguns momentos, a câmera não acompanhava a personagem e dava para ouvir vários ruídos vindos da plateia. A voz do narrador, que dialogava com Caipora nas cenas, estava abafada e por algum momento, o locutor pareceu ter um sotaque português (?), dificultando um pouco a compreensão. No entanto, de um modo geral, apesar desses percalços, a peça foi um bom entretenimento para uma noite de sexta-feira pandêmica, e possibilitou conhecer um pouco mais do trabalho da dupla Giselle Rodrigues e Jonathan Andrade, que, inclusive, já haviam trabalhado juntos num outro projeto em Brasília. 

O fato é, que entre as doses de humor e um bom entretenimento, o grande mérito dessa montagem são as provocações e reflexões que podem ser tiradas a partir da trama. A primeira em relação à rotina desregulada, que na sociedade atual isso é um mal comum e vem carregada de uma série de problemas físicos e psicológicos. Depois, essa sobrecarga e exigências que afastam o indivíduo das relações sociais e podem gerar pessoas mais solitárias, além de causar depressão. E a ausência de autocuidado também faz com que haja um descomprometimento com as questões voltadas para a natureza e com o mundo à volta. 

Nesse quesito, talvez o interessante a fazer, quando começar a notar esses tipos de comportamentos, fruto dessa rotina desenfreada, seja buscar se livrar de qualquer amarra que te prende e faz mal. Assim como acontece na peça, quando a personagem Caipora, cansada dessa jornada estressante, recorre aos princípios da Caipora folclórica, habitante do mato, para então se reconectar consigo mesma e com as suas origens. O resultado é um grito de liberdade. 

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