As Bruxuleantes de Salém | Crítica sobre “As bruxas de Salém”

por Vendo Teatro
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Por Luiz Diego Garcia
Junho de 2019.
Foto: Thiago Farias Neves/Divulgação

As Bruxuleantes de Salém

Não há trégua na natureza. Há histeria.

A chuva caía incessante desde quinta-feira. Foi debaixo desses dias chuvosos que “As Bruxas de Salém”, texto de Arthur Miller posto em cena pelo estreante Grupo Célula de Teatro, realizou sua primeira temporada no Teatro Barreto Júnior.

Tendo como premissa textual a onda de execuções que ocorreram nos Estados Unidos em que cerca de oitenta pessoas foram acusadas ​​de práticas de bruxaria em uma caça às bruxas que durou de 1648 a 1663 na Nova Inglaterra, com treze mulheres e dois homens sendo executados, o julgamento das Bruxas de Salém, principal recorte usado pelo texto apresentado, em 1692, resultou na execução de 19 pessoas.

O título original do texto “The Crucible” se traduz por “O Cadinho”; um cadinho é um recipiente, muitas vezes de cerâmica ou porcelana, usado para derreter e purificar metais. Outra definição é que um cadinho é um tempo ou prova de grande severidade, no qual diferentes elementos reagem e algo novo é formado, alquimizado. Referindo-se também a um julgamento em tribunal em particular. Claramente, ambas as definições se aplicam ao título da peça. E é nessa atmosfera que a encenação atua.

Com 21 atores e atrizes em cena, entre profissionais e amadores, a direção é assinada por Domingo Soares que transborda a obra de Miller com sua percepção trágica sobre os eventos; pondo em cena um Coro que, na tragédia clássica, é uma personagem coletiva que tem a missão de cantar partes significativas do drama, o tom que permeia a obra apresentada é algumas notas mais alto do que confortável. Numa mise-en-scène que opta por uma cenografia mais branda, a imagem vista é plasticamente agradável, assim como a paleta de tons medievos do figurino reage ao passo que adiciona mais elementos harmônicos ao espetáculo. A alquimia imagética acontece.

Os elementos das correntes de atuação escolhidas para mover esse caldeirão borbulhante mescla um conjuntos de atores e atrizes que sinuam por curvas por vezes escorregadias; há urgência na atmosfera, mãos tensas, gritos alarmantes e pouco contraste para que o espectador sinta a tensão crescente da horda de injustiças que é posta ao longo das duas horas de espetáculo. Dentro dessas fragilidades estreantes se encontra José Miranda, que conduz os fios da corda pelo pescoço da platéia com seu trabalho de aproximar o homem-humano à humanidade. É notável o trabalho de imersão e estudo do ator e produtor executivo; numa cena que chicoteia as costas morais do público Miranda torna a experiência menos afetada, para que quando exploda, faça com precisão. Karol Spinelli e Marília Linhares, parceiras de cena mais próximas de Miranda, têm também em seus trabalhos preciosos-precisos momentos de lucidez e transitam – Spinelli principalmente – pelo desarranjo emotivo e desesperançosa calma muito eficientemente. E os ares de Salém se tornam mais dolorosamente audíveis ao espectador. Os dessabores das alegorias de Justiça e Igreja encarnam os atores Domingos Soares e Nemu Campos, respectivamente, tornando a experiência de Salém mais fragmentada e, assim, mais atrativa; os atores estão em cena com vontade, personagens odiáveis ou não, há tentativa de desmaniqueizar tais personas, mesmo que às custas da lucidez social.

Nessa alquimia bruxuleante de Salém o elemento que mais transborda a cena é a coragem. O texto tem toda a atualidade nociva que precisa para pôr em cheque tanto as convicções religiosas quanto as santificações políticas que chovem incessantes sobre os tempos. Uma enxurrada de questionamentos morais executados com coragem, desejo e luxúria teatral, “As Bruxas de Salém” faz o trabalho impiedoso de questionar a iconoclastia moderna e bígama que Igreja e Justiça se tornaram.

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